Título: A paz dos bravos
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 29/03/2005, Opinião, p. A10

Tem significado histórico para a estabilidade sul-americana o encontro de amanhã entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Alvaro Uribe (Colômbia), Hugo Chávez (Venezuela) e Jose Luis Zapatero (Espanha), em Ciudad Guayana, sudeste venezuelano. A importância da reunião é justificável. A região, afinal, vem padecendo de sintomas perturbadores, decorrentes, sobretudo, da exacerbação dos conflitos entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o governo de Uribe. Mais: a confirmação de que o grupo guerrilheiro tem extrapolado as fronteiras nacionais daquele país, espalhando pelas nações vizinhas a gravidade de uma violência que há quase quatro décadas corrói as instituições colombianas. No meio da disputa, há constantes indícios de que Chávez estimula e apóia a guerrilha. Some-se ainda a crescente intervenção americana na região, em ações motivadas pelos rastros danosos dos narcotraficantes.

No encontro - cuja pauta prevê atenção para o debate sobre narcotráfico e terrorismo - caberá ao presidente Lula uma tarefa inadiável: apresentar o Brasil como o país moral e politicamente mais capacitado para mediar o conflito e buscar uma solução política contra a violência instaurada na região. O desafio é complexo. Recentemente, a diplomacia brasileira deixou claro à Colômbia que não apoiaria uma articulação diplomática de Bogotá para que as Farc fossem oficialmente consideradas um grupo terrorista.

Ao mesmo tempo, o Itamaraty sabe que a guerrilha se alimenta do narcotráfico, de seqüestros de civis e do ''imposto revolucionário'', eufemismo para extorsão. A entrevista do repórter Hugo Marques com o chefe da Comissão Internacional das Farc, Raúl Reyes, publicada domingo no JB, é especialmente reveladora da natureza do grupo. Concorde-se ou não com as declarações do principal porta-voz das Farc, estão ali as principais idéias da guerrilha colombiana.

O entrevistado refere-se a um ''Exército revolucionário'' cuja missão é lutar pela paz com justiça social na Colômbia, ''com vontade política para a solução dialogada''. Inclui-se como uma alternativa real de poder: ''Temos requisitos políticos para ser reconhecidos internacionalmente''. Culpa a ingerência dos EUA pela exacerbação dos conflitos com o governo. Pensa como integrante de uma instituição legal; um governo paralelo, mas legítimo.

Não se sabe de que mundo Reyes fala. Reafirme-se o que as Farc são de fato: uma megacorporação de braço militar e financeiro de raras proporções. Um grupo que age na ilegalidade, por meio de ações intimidatórias e de natureza claramente terrorista. Uma organização cuja meta é chegar ao poder com a ''solução dialogada'' da bala. Estima-se que sob seu poder estejam mais de 1.600 pessoas. Opta por métodos geradores de uma crise social e humanitária sem precedentes - mesmo se considerado o histórico de guerra civil da Colômbia. (À violência das Farc, sublinhe-se, somam-se os massacres promovidos pelas milícias paramilitares de ultradireita, criados para combater as guerrilhas.)

Trata-se de uma aposta incompatível com os avanços verificados nas democracias latino-americanas. As Farc só têm, portanto, um caminho a seguir: organizar-se como partido político e ingressar no jogo democrático. Qualquer outro método parece estéril. Também para Uribe, é inútil adotar a estratégia do confronto para combatê-las. A solução armada, já se comprovou, é inviável. Tais impasses extravasam os limites colombianos. Arranham a soberania dos países vizinhos. Criam problemas diplomáticos espinhosos.

O Brasil - hoje o principal fiador da estabilidade sul-americana mas incapaz de suportar a convivência com duas fronteiras explosivas - precisa assumir a liderança da transição da violência, do terror e das drogas para a tão desejada paz. A reunião de amanhã é a melhor oportunidade para isso.