Título: Política em cenário cinzento
Autor: Milton Temer
Fonte: Jornal do Brasil, 29/03/2005, Outras Opiniões, p. A11
Mais tristes que os difíceis são os tempos medíocres. Períodos históricos conturbados constroem cidadania; estabelecem relação direta com o projeto futuro; obrigam opções. Cada um escolhe seu campo. Tempos difíceis, mas de otimismo, vivem os povos da Argentina e da Venezuela. Os do Uruguai e da Bolívia. Tempos difíceis viveu o povo trabalhador brasileiro no combate ao regime ditatorial militar nascido do golpe de 64. Na luta pela anistia, do fim dos 70. Difíceis, mas já esperançosos, nos 80 do Diretas-Já, dos embates da Constituinte e da primeira campanha de Lula. No Fora Collor, da década de 90, e nos confrontos com a arrogância do pensamento único, monetarista e recessivo, do mandarinato tucano-pefelista de FHC. Para festejar, ou pelejar, o povo se mobilizou.
Tempos medíocres, de perigosa fragmentação, vive a maioria absoluta dos 52 milhões de brasileiros que, em 2002, sufragou a esperança contra o medo. E que se viu surrupiada com a insólita guinada doutrinária do Partido dos Trabalhadores, na seqüência do estelionato eleitoral do governo em que é hegemônico.
Tempos medíocres porque portadores de uma imensa frustração coletiva. O blefe em que se transformou o longuíssimo parto da dança de cadeiras ministeriais, para consolidar, pela direita, a base de apoio à reeleição de Lula, em 2006, é apenas a última prova.
Atentem para o discurso do novo ministro da Previdência, Romero Jucá - ex-líder do governo FHC no Senado, e envolvido, ele próprio, em denúncias de fraudes contra bancos oficiais e débitos com o INSS.
Arrotando certezas na recuperação do sistema bichado, anuncia combate à corrupção e à sonegação, não pelo combate às práticas criminosas, mas, pelo corte no seguro-doença. Como se estivessem aí os buracos essenciais a tapar. Tudo empacotado, é claro, na cantilena do ''déficit'' resultante dos benefícios a pagar, em relação às contribuições de assalariados e patrões. Desinformação deliberada que, por incompetência ou má-fé, boa parte das editorias especializadas dos meios de comunicação limita-se a transcrever, sem nenhuma análise do conteúdo.
Déficit onde, cara-pálida? Só se for de dignidade dos antigos dirigentes sindicais petistas, hoje refastelados nos palácios e ministérios. Porque eles, mais do que ninguém, sabem dos desvios indevidos das receitas do Cofins, da CSLL e da Contribuição sobre Movimentação Financeira, legalmente destinados à Seguridade Social. Desvios para um exagerado superávit paralisante, todo destinado, inocuamente, ao pagamento de juros e serviços de uma dívida nunca auditada. Desvios para garantir os lucros pantagruélicos do sistema financeiro privado.
Francamente, os democratas e progressistas não mereciam a melancolia em que esse governo os mergulhou. O xororô do ''somos obrigados a concessões., pois não temos maioria no Congresso'' também não convence. Podem até não ter maioria parlamentar. Mas não por conta da representatividade real, e sim pela tremenda distorção da distribuição de cadeiras na Câmara dos Deputados. Mais que isso, aliás, dois excelentes livros recentemente lançados - As esquinas perigosas da História, de Valério Arcary, e Democracia ou bonapartismo, de Domenico Losurdo, lançados respectivamente pela Xanã e pela Editora da UFRJ - registram.
O sufrágio universal é importantíssimo. Mas não é o referencial absoluto do que seja um regime democrático, nem do que seja a distribuição real das forças sociais no embate político. Por caminhos distintos, e voltados a objetos de reflexão também distintos, os dois mostram como ele pode ser o mais eficaz caminho para a neutralização das forças populares ascendentes, e para a consolidação, paradoxalmente, do poder das minorias privilegiadas.
Há um momento, no entanto, em que o sufrágio universal mais se aproxima da realidade, na aferição dos anseios da sociedade. É na campanha presidencial. Aí, cada cidadão tem o mesmo peso. Em 2006, num cenário que anuncia um embate anódino entre a centro-direita de Lula e a velha direita da dobradinha PSDB-PFL, abre-se o espaço para uma alternativa de esquerda. Ela está aí, com a senadora Heloisa Helena. Impossível imaginar, no plano nacional, processo semelhante ao de Luizianne Lins, em Fortaleza?
PS - Hoje, noitada imperdível contra o baixo astral. No Carlos Gomes, Moacyr Luz, com os poemas musicados sobre o Rio. Uma hora antes, Zé Renato, voz e violão, no Paço Imperial. É para aplaudir de pé.