Correio Braziliense, n.20612, 29/10/2019.Política, p. 3

Sem risco à pauta econômica
29/10/2019



A onda antiliberal vista nas últimas semanas na América Latina, com os protestos no Chile e a eleição da chapa de esquerda para presidir a Argentina, retomou, no Brasil, discussões sobre efeitos da capitalização do sistema previdenciário e eventuais prejuízos de privatizações de estatais — para citar alguns dos assuntos que levaram os chilenos às ruas. Apesar da dimensão dos protestos, o que acontece no Chile serve de alerta ao governo brasileiro, mas não ameaça a agenda econômica em curso, avaliam especialistas ouvidos pelo Correio.

Apesar da repercussão em discursos políticos inflamados e das naturais comparações entre os modelos econômicos adotados, “os protestos no Chile não mudam o voto de ninguém no Congresso”. O governo, muito menos, tira alguma proposta da lista de prioridades. Segundo especialistas, reformas administrativa e tributária e privatizações não correm o risco de ser atingidas pelos problemas ao redor.

O principal impacto político do que acontece no Chile é de chamar a atenção para que a pauta não seja exclusivamente de privatizações e reformas. O importante, segundo especialistas, é que haja uma agenda social para compensar as medidas liberais que forem adotadas no Brasil. “A situação no Chile serve como alerta para a importância dessa pauta paralela, mas não é uma ameaça à agenda em andamento”, avalia o economista Robson Gonçalves, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV).

No atual governo, avançar com essa agenda social é papel do Parlamento, explicou o analista político Thiago Vidal, da Prospectiva. Com perfil “extremamente liberal”, o objetivo do Ministério da Economia é, claramente, cortar gastos. “A preocupação não é com qualidade de serviços públicos ou diminuição de desigualdades”, explicou. Já o Congresso tem foco no social e assume a responsabilidade de complementar a agenda fiscal. “Tem que, eventualmente, dar alguma coisa em troca, algum ponto positivo”, disse Vidal.

“Todo presidente tem as duas agendas, econômica e social. Cada um privilegia uma. No caso do presidente Jair Bolsonaro, a preocupação com o social é muito tímida, ele quase não fala disso. Depois de mais de 10 anos de governo petista, em que essa agenda era muito forte, a minha impressão é de que as pessoas começam a cobrar”, afirmou Vidal.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), refletiu esse pensamento ontem, ao declarar que “precisamos ter a agenda que destrava a economia e na qual possamos ter a redução da pobreza”. Para o economista Robson Gonçalves, professor da FGV, a declaração, acertada, tem influência do que ocorre no Chile. É uma forma de o Congresso se antecipar a uma possível demanda das ruas. Pelo menos para o Parlamento, as manifestações acenderam o sinal de alerta.

Negligenciar a importância dessas medidas pode levar o Brasil a precisar fazer uma agenda compensatória de última hora, sob pressão, como aconteceu no Chile. Na semana passada, o presidente Sebastián Piñera anunciou uma série de mudanças que inclui, entre outros pontos, aumento nos valores de aposentadorias e redução de salários no alto escalão do funcionalismo público.