Título: ''É preciso separar o joio do trigo''
Autor: Paula Barcellos
Fonte: Jornal do Brasil, 26/03/2005, País, p. A3

Na quarta-feira, termina o prazo do recebimento de críticas e sugestões ao anteprojeto da reforma universitária apresentado pelo MEC. Mas as discussões, de acordo com o ministro da Educação Tarso Genro, estão apenas começando. Uma segunda versão preliminar do projeto deve ser divulgada em 15 de abril, quando, novamente, a sociedade civil poderá avaliar os tópicos propostos. A perspectiva é que o projeto final seja encaminhado ao presidente da República no meio de junho. A criação de um conselho social regulado pelo poder público, de um curso básico para todas as faculdades e da política de cotas são os pontos mais questionados, especialmente pelas instituições privadas do ensino superior. Uma polêmica a mais foi criada semana passada com a divulgação de uma pesquisa de mapeamento racial ¿ a porcentagem de negros nas universidades seria equivalente a declarada pela população em geral. O ministro assegura, no entanto, que esses dados apenas ratificam a existência da ação afirmativa: ¿ Se já existe essa presença proporcional do afrodescendente na universidade, então não há problema para que a lei seja aprovada e aplaudida por todos.

As contradições presentes nos debates sobre a reforma, segundo o ministro, serão restritas a etapa preliminar. ¿O projeto vai ser de responsabilidade do MEC que ouviu a sociedade. Não vai ser um frankenstein abrigando propostas contraditórias¿, pondera.

¿ Como o senhor avalia a reação ao anteprojeto reforma universitária? Qual a razão de tanta grita?

¿ A reação em geral foi boa. Ela é dividida em três vertentes, embora a que tenha sido mais divulgada pela impressa seja a crítica de parte das instituições privadas. Mas são três posições: acolhimento da proposta da reforma, como algo positivo, mas evidentemente com sugestões de modificações secundárias; posição de que é pertinente a proposta do MEC de colocar em debate, que o documento serve para construir a reforma; e a terceira é agudamente crítica, originária de alguns setores da chamada esfera privada educacional. A proposta de reforma foi publicada com o título Versão preliminar de anteprojeto. Ou seja, era um ante anteprojeto justamente para suscitar esse documento base propostas da sociedades, das instituições, da sociedade civil sobre a reforma.

¿ Quais são pontos que o senhor modificaria no projeto, de acordo com as propostas recebidas?

¿ Uma questão muita cara a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e as próprias universidades paulistas, as estaduais, e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), é que possamos colocar desde logo algumas regras gerais para obtenção de metas de qualidade nas universidades. Acreditamos que num primeiro momento não seria pertinente colocar essa questão, porque isso poderia ser resolvido no Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), mas de qualquer forma não há problema que se coloque desde logo essas regras.

¿ Algum outro ponto?

¿ Outro exemplo é que as universidades tratassem de ter cursos mais enxutos, não de três anos no mínimo como propomos. Mas, à semelhança dos colleges americanos, cursos de dois anos acompanhados do ciclo básico que estamos colocando. Estamos examinando essa questão porque é muito controversa no meio do conjunto dos parceiros, das mais de 200 entidades que estão discutindo conosco. Mas é uma proposta que também deve ser avaliada.

¿ O ciclo básico (dois anos de formação comum nas faculdades), proposto no anteprojeto, não seria, na verdade, uma forma de compensar a deficiência proveniente do ensino básico?

¿ Não, mas pode funcionar sim como elemento de equalização. Mas o objetivo primário não é propriamente esse, embora tenha também essa função. O objetivo primário é permitir que o aluno retarde sua escolha profissional e possa ter, se quiser, dois anos de formação básica ainda sem optar por uma carreira profissional. Mas se quiser, já pode optar desde o primeiro ano, não há problema. Queremos dar uma alternativa. Não seria obrigatório o cumprimento de maneira exclusiva.

¿ A criação dos Conselhos Sociais foi bastante questionada especialmente pelas instituições privadas.

¿ Esses conselhos já existem em boa parte das instituições, inclusive privadas. No Rio Grande do Sul, a maioria das comunitárias tem esse tipo de conselho social com outro nome. Mesmo em instituições federais, como a de Minas Gerais, já têm esse conselho. Então é um conselho de caráter consultivo para proporcionar transparência nas relações das universidades com a sociedade. Não sei por que o temor desse conselho. Não pode ter nenhuma função normativa.

¿ O conselho não estaria esbarrando na autonomia universitária defendida na Constituição?

¿ O conselho não pode infringir a autonomia. Está, digamos assim, trazendo para o terreno concreto essa autonomia. Então, um conselho dessa natureza jamais poderia infringir a autonomia da universidade e a própria capacidade integrativa plena do conselho superior.

¿ O senhor recebeu alguma contra-proposta referente ao conselho?

¿ A ABC e a SBPC propuseram, por exemplo, que tenhamos um conselho de desenvolvimento ao lado do conselho social, ou substituindo ele, para que a liberação de recursos para projetos de qualidade não fique apenas com a avaliação interna do MEC. É uma proposta razoável, evidentemente desde que as gestão públicas sejam a maioria dentro deste conselho, porque se trata de liberação de recursos públicos. É possível pensar num conselho dessa natureza.

¿ Os ex-ministros da Educação Paulo Renato e Cristóvam Buarque acreditam que o anteprojeto falha ao não mencionar o ensino a distância. O senhor concorda?

¿ Eles inclusive apresentaram uma proposta que deveríamos ter um capítulo dedicado ao ensino a distância. Optamos por não colocar na versão preliminar, porque achávamos que isso aí deveria ser objeto de uma lei especial, já que ainda é uma questão em evolução. Mas estamos dispostos a colocar algumas normas gerais que regule o ensino a distância porque efetivamente, não há dúvida, isso aí vai adquirir uma grande importância no processo educacional a médio e longo prazo, já tendo alguma importância hoje.

¿ Como o senhor avalia a posição da Andes, contrária à reforma, e na defesa da apresentação de dois projetos distintos: um relativo ao ensino público e outro ao privado?

¿ A Andes até agora não fez uma proposta mais completa porque é contra a reforma. A Andes tem uma posição de que a reforma é desnecessária, o que me faz presumir que ela acha que a situação está boa como está ou acredita que uma reforma pode piorar. Não sabemos qual é a posição da Andes porque eles têm uma posição de que qualquer tipo de reforma levaria para a privatização. Está posição é absurda, porque estamos sendo acusados, e pesadamente, pelos setores mais conservadores e pelo setor privado de estar reforçando demais a universidade pública, inclusive com recursos demais, segundo essas versões. Então, temos de fazer uma proposta que tenha salva-guarda concreta para expansão e qualidade da universidade pública, mas que trate de ambos os setores, público e privado, porque ensino superior é um só e tem de oferecer qualidade e alargar suas portas de ingresso para o conjunto da população brasileira.

¿ Por que o MEC cancelou a solenidade de divulgação da pesquisa de mapeamento racial?

¿ Essa pesquisa é feita anualmente pelo MEC e pela Andifes. Na verdade é uma pesquisa da Andifes que o MEC financia e foi anunciada sem a minha autorização. Não estava sabendo de nenhum lançamento de pesquisa naquele dia. Os estudos e a avaliação da pesquisa ainda não foram feitas. Não tinham autorização para apresentarem essa pesquisa em nome do MEC. O que houve, na verdade, foi uma divulgação antecipada por um órgão de comunicação de maneira velada, sem qualquer autorização do MEC ou da Andifes, com interpretação inclusive que não condiz com a nossa visão. Acreditamos até que a pesquisa pode ser tecnicamente boa, mas não é isso que está em discussão.

¿ Segundo os dados da pesquisa, o percentual de negros e brancos nas universidades seria proporcional ao da população. A partir dessa estatística, como justificar a política de cotas?

¿ Essa pesquisa, por exemplo, não traz dados sobre faculdades de medicina, direito e odontologia na proporção de afrodescendentes e brancos, que é uma coisa essencial. A discriminação se dá sempre nos melhores cursos. A discriminação social se origina da condição social, porque aqui no Brasil não existe normas de discriminação racial juridicamente instituídas. Se, eventualmente, estivermos tratando essa questão, a partir da ótica de que já existe essa presença proporcional do afrodescendente na universidade, então não há problema para que a lei seja aprovada e aplaudida por todos, já que só vai confirmar uma situação social já existente.

¿ Há quem diga que as cotas levariam à perda da qualidade no ensino superior. Qual a sua avaliação?

¿ Não há porque temer que isso vai determinar perda de qualidade, porque a presença dos afrodescendentes já está garantida dentro das universidades. Na opinião do MEC, a questão não pode ser discutida de maneira apaixonada nem ideologizada, como está sendo feita, porque isso pode levar a uma discussão de racistas e não racistas no Brasil, coisa que não está na nossa meta e não é efetivamente uma questão do país. Então, por isso, suspendemos a apresentação da pesquisa, por razões eminentemente de natureza técnica e de compromisso nosso com a Andifes. Não temos nenhum juízo de valor nem negativo nem positivo dessa pesquisa. Agora está sendo feito um estudo da pesquisa, com a Andifes, para trabalhar o que ela diz.

¿O senhor diz que a educação não é uma mercadoria qualquer. Há quem defenda, porém, o poder da regulação do próprio mercado. Como o senhor responde esses críticos?

¿ Essa posição é conhecida e responsável pelo verdadeiro caos regulatório que a educação superior privada tem hoje no Brasil: gera insegurança para as próprias mantenedoras e prejudica aquelas instituições que são efetivamente empresariais e querem ser sérias como prestadoras educacionais e aquelas filantrópicas. Pela possibilidade de se ter instituições, embora sejam formalmente sem fins lucrativos ou filantrópicas, se constituem estruturas geladas de acumulação privada por um conjunto de subterfúgios. Isso não é efetivamente a totalidade, mas é necessário que você tenha um marco regulatório, que separe o joio do trigo, que prestigie que as empresas educacionais exerçam sua função auferindo o lucro privado que a constituição permite, mas que a educação seja tratada como bem público e não se transformem em verdadeiras empresas disfarçadas. Isso existe em vários pontos do país. Instituições que mesmo sem fins lucrativos constituem núcleo de poder para a utilização da universidade para fins paralelos à própria finalidade educacional. Então, um marco regulatório novo tem de enquadrar isso dentro do sistema para dar tranqüilidade para o próprio setor.

¿ Outro problema está na proliferação de faculdades. Hoje parece que qualquer pessoa, com um mínimo de condições, pode abrir um centro universitário. Essa disseminação é ilegal ou a lei é conivente?

¿ Hoje basta cumprir algumas formalidades legais para se abrir uma faculdade. Os marcos regulatórios são frouxos, é absolutamente previsível que quem preenche determinadas condições formais possa abrir uma faculdade mesmo que desvirtue depois as suas funções, não tendo o MEC um poder de exercer um poder de polícia tão forte que permita, por exemplo, o fechamento dessas instituições.