Título: Saques tomam conta da capital
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Fonte: Jornal do Brasil, 26/03/2005, Internacional, p. A7

Manifestação popular que derrubou governo dá lugar a ataques e destruição generalizada. Três pessoas teriam morrido

BISHKEK - A súbita tomada de poder pela oposição do Quirguistão forneceu impulso moral a outros partidos de oposição em antigos Estados soviéticos na Ásia Central, mas a violência que cercou a derrubada do regime, na quinta-feira, e a onda de saques e violência que continuava ontem podem ter estabelecido um precedente perigoso. O toque de recolher foi decretado e a polícia ocupou pontos estratégicos na capital do país, para tentar controlar a situação na cidade, que está sem iluminação pública.

Na rua Smolenskaya, os policiais dispararam vários tiros no início da noite para afastar grupos de jovens. Alguns agentes receberam autorização para utilizar armas de fogo contra os saqueadores, informou a agência russa Itar-Tass. A polícia deu informações sobre um ''intenso tiroteio'' entre seus agentes e um grupo de arruaceiros que tentou saquear um grande shopping de Bishkek.

Diante do ministério do Interior, a polícia entregou capacetes, pistolas e cassetetes para voluntários civis dispostos a ajudá-la. A manutenção da ordem está a cargo de milícias populares e de destacamentos de defesa civil do movimento juvenil Kel-Kel. Pelo menos três pessoas morreram e mais de 200 ficaram feridas, incluindo 31 policiais, durante a noite, quando dezenas de shoppings, cafés, restaurantes e lojas foram saqueados.

Os cinco ''istãos'' do flanco Sul da antiga União Soviética tiveram pouco ou nenhum progresso em conceder à maioria da população uma participação no governo desde sua independência de Moscou, em 1991.

Os protestos que levaram à saída do presidente Askar Akayev, antes visto como o mais liberal dos líderes em uma região governada por autocratas, teve semelhanças com as ''revoluções pacíficas'' nos ex-Estados soviéticos da Geórgia e Ucrânia nos últimos dois anos. Mas os paus, pedras e bombas com gasolina usados pelos manifestantes - muitos deles pobres de fora da capital que atacaram símbolos do regime de Akayev e saquearam lojas ligadas aos negócios de sua família - divergem profundamente daqueles protestos pacíficos.

- Na Ásia Central essas revoluções não podem ser tão suaves como na Ucrânia e na Geórgia - diz Surat Ikramov, ativista de direitos humanos no Uzbequistão, onde o presidente Islam Karimov impede até mesmo partidos de oposição moderados de participar de eleições. - Pode chegar um dia em que a mesma coisa aconteça no Uzbequistão, talvez com mais gravidade e mais derramamento de sangue.

O Uzbequistão, a mais populosa república da Ásia Central, teve sua imagem de estabilidade abalada no ano passado por explosões a bomba atribuídas a extremistas islâmicos e por uma onda de protestos espontâneos de comerciantes contra novos impostos.

- Alguns líderes da região vão dizer que Akayev foi tolo em ser tão liberal, alguns que isso não vai acontecer aqui porque eles são mais espertos do que ele... e alguns que esse é um precedente preocupante - disse um observador ocidental.

Lojze Peterle, esloveno enviado da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), lamentou o desrespeito à lei e à ordem e pediu que todos os líderes políticos do país assumam suas responsabilidades.

Segundo Peterle, ex-ministro de Assuntos Exteriores esloveno e membro do Parlamento Europeu, o Quirguistão enfrenta um momento crítico e os líderes devem tomar todas as medidas necessárias para a normalização e estabilização da situação,

''Só um ambiente seguro e pacífico permitirá que todos os envolvidos mantenham um diálogo político. É um requisito prévio a um desenvolvimento democrático sustentável baseado no Estado de Direito'' afirmou o enviado, que este ano assumirá a presidência da organização, de acordo com um comunicado da OSCE emitido ontem. ''Baseado em seus princípios e compromissos, a OSCE fará tudo o que for possível para oferecer uma plataforma e ajudar todas as partes a buscar o consenso e a trabalhar para a estabilização da situação''.

A imprensa eslovena noticiou que Peterle saiu ileso de um ataque de manifestantes ontem no Quirguistão.

- Meu carro foi atacado e atingido por pedras e paus, mas graças a manobras do motorista conseguimos passar pelo bloqueio - contou.

Complemento:

Deposto diz que não renunciou

O presidente deposto do Quirguistão, Askar Akaiev, desaparecido desde quarta-feira, denunciou ''um golpe de Estado'' e, negando sua renúncia do cargo que ocupava há 15 anos, assegurou que sua estada fora do país é ''temporária''. Akaiev foi forçado a fugir depois que uma multidão tomou de assalto a sede do governo e os principais prédios públicos da capital.

- Um bando de aventureiros políticos irresponsáveis e conspiradores optou por tomar o poder pela força - disse Akayev por meio de um comunicado. - Os rumores divulgados sobre minha saída são falsos .Tinha forças suficientes sob meu controle para reprimir o protesto, mas, contrariamente aos conselhos de parte de meus assessores, dei ordem, a fim de evitar vítimas, para que não fosse usada a força. Tomei a decisão, para evitar derramamento de sangue, de abandonar provisoriamente o país - afirmou.

O presidente deposto acusou a oposição de usar a população como fantoche para uma manobra golpista.

- A tentativa de me privarem, de forma inconstitucional, de minhas prerrogativas presidenciais constitui crime de Estado - disse o presidente, que estaria agora na Rússia.

Segundo a esposa de Akaiev, Mairam, o marido e ela fugiram do país com o sinal verde da comunidade européia para salvar suas vidas.

- Estamos em local seguro, mas o país perece. Todo mundo pode ver os vândalos saqueando a cidade - acrescentou à uma emissora de rádio russa.

O líder da oposição, Kurmanbek Bakiev, nomeado pelo parlamento como primeiro-ministro e presidente em exercício, convocou ontem eleições para junho e nomeou quatro ministros e um procurador-geral. Bakiev escolheu nomes da oposição para os ministérios das Relações Exteriores, Defesa, Comunicações e Finanças.

Em meio à crise, o líder da chamada Revolução das Tulipas garantiu que o Quirguistão não pretende revisar os acordos internacionais assinados pelo regime de Askar Akaiev.

- É possível dizer isso sobre a permanência na república das bases aéreas da coalizão antiterrorista americana, para a campanha no Afeganistão e da base russa de Kant - a 30 km de Bishkek, acrescentou.

Enquanto isso, o presidente russo, Vladimir Putin, assegurou em Yerevan, capital da Armênia, que se o presidente derrubado quiser se refugiar na Rússia, Moscou não se oporá.

- O desenvolvimento dos acontecimentos no Quirguistão não foi surpresa, mas o resultado do acúmulo de problemas sócio-econômicos - disse Putin. Em referência à eclosão de três revoltas populares em países da ex-União Soviética nos últimos 18 meses, o presidente russo defendeu a necessidade de preservar a Comunidade de Estados Independentes (CEI).

O chefe do Kremlin expressou sua esperança de que a oposição ''assuma o mais rápido possível o controle da situação e compreenda sua responsabilidade perante o povo''.

- Estes líderes são bem conhecidos na Rússia e fizeram muito pelo desenvolvimento das relações bilaterais - disse.