Correio Braziliense n. 20609, 26/10/2019. Mundo, p. 12

Um milhão na rua contra Piñera



CHILE » Multidão marcha em Santiago no oitavo dia de protestos contra a política econômica e social do presidente.
A revolta social mais aguda e profunda vivida pelo Chile desde o fim da ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990) entra na segunda semana com a violência registada nas primeiras noites dando lugar a um movimento político e organizado contra a política econômica e social do presidente direitista Sebastián Piñera. Ontem, a marca principal do protesto foi a participação em massa: um milhão de manifestantes marcharam pelas ruas centrais de Santiago, exibindo bandeiras chilenas e da nação indígena mapuche, entoando canções de protesto do período ditatorial e cartazes com críticas à desigualdade, aos baixos salários e aposentadorias e aos custos da saúde e da educação.

“Vivemos uma jornada histórica. A região metropolitana é protagonista de uma passeata pacífica com cerca de um milhão de pessoas que representam o sonho de um novo Chile, de forma transversal sem distinção”, escreveu no Twitter a prefeita da capital Karla Rubilar, considerada uma independente no grupo político de Piñera. Incidentes isolados se registraram em alguns pontos, entre eles as imediações do Palácio de La Moneda, sede do governo, onde as forças de segurança dispararam jatos d’água, bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar manifestantes.

A explosão de descontentamento havia irrompido uma semana antes, em resposta a um aumento nas passagens de metrô. Sem uma direção política clara, estudantes e outros grupos atacaram, incendiaram e depredaram estações, dando início a uma sequência de noites marcadas por saques ao comércio e confrontos com as forças de segurança. Desde a madrugada do último sábado, o governo decretou estado de emergência e convocou o Exército para garantir a ordem em Santiago e outras cidades, pela primeira vez desde o o fim da ditadura. Pela sétima noite consecutiva, voltou a vigorar ontem o toque de recolher.

A primeira semana de protestos e confrontos deixa um saldo de 19 mortos, centenas de feridos e mais de 1.500 detidos, por atos de violência ou por desacato ao toque de recolher. Em meio à multiplicação das denúncias de excessos cometidos por militares e policiais, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, anunciou o envio ao país de uma missão encarregada de examinar a situação, a convite de Piñera, que chamu também ao país o diretor para as Américas da organização internacional Human Rights Watch, José Miguel Vivanco. O último de uma série de boletins do Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH)    afirmava que, entre os 584 feridos, 245 foram atingidos por armas de fogo.

Modelo contestado

A grande marcha de ontem na capital consolidou o rechaço de um amplo espectro da sociedade ao modelo econômico privatista aprofundado por Piñera desde que retornou ao governo, em 2018, sucedendo a socialista Bachelet — repetindo a alternância entre os dois no período imediatamente anterior. Acuado pelos protestos, o presidente revogou o aumento das passagens no fim de semana, mas não conseguiu restabelecer a calma. Na terça-feira, reuniu-se no palácio com os líderes da oposição de centro-direita, pediu perdão ao país por sua “falta de visão” e anunciou um pacote de medidas sociais, incluindo reajuste nas aposentadorias de menor valor, um complemento para o salário mínimo e a revogação de um aumento nas tarifas de eletricidade.

O Partido Socialista, o principal da oposição, os comunistas e a esquerda radical rejeitaram o diálogo com o presidente enquanto vigorarem as medidas de exceção. Na quarta e quinta-feira, a Central Unitária dos Trabalhadores (CUT), principal organização sindical do país, comandou uma greve geral que paralisou as principais cidades e resultou na primeira grande manifestação pacífica e organizada na capital. Ontem, transportadores e motoristas engarrafaram as rodovias que ligam Santiago ao restante do país para pedir uma redução nas elevadas taxas do sistema eletrônico de pedágio. “Essa é agora a reivindicação de todo um país” disse uma manifestante que participava de um panelaço na capital. “Nós estmos cansados.”

Vivemos uma jornada histórica. A região metropolitana é protagonista de uma passeata pacífica que representa o sonho de um novo Chile” Karla Rubilar, prefeita de Santiago

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Total de mortes confirmadas após oito dias de manifestações no país.