O Estado de São Paulo, n. 46537, 17/03/2021. Economia. p.B1

PEC do auxílio emergencial cria nova regra com limite para a dívida pública

Contas do governo. Lei complementar vai definir meta para a relação dívida-pib. Hoje, porcentual está em 89,7% e países emergentes com grau de investimento têm taxa média de 51%; Brasil, no melhor momento da série do BC, chegou a 51,5% em dezembro de 2013

 

Adriana Fernandes / BRASÍLIA

 

A dívida pública passará a ser a principal âncora da política fiscal brasileira para garantir a sustentabilidade e enfrentamento do rombo das contas públicas. A introdução de uma meta para a dívida pública no arcabouço das regras fiscais do País foi incluída na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do auxílio emergencial, promulgada esta semana pelo Congresso.

Para garantir a sustentabilidade fiscal, a emenda prevê a necessidade de definição de uma trajetória de convergência do montante da dívida com os limites a serem definidos. O texto autoriza medidas de ajuste para as contas públicas alcançarem a trajetória desejada e o planejamento de alienação de ativos para a redução da dívida, como é o caso das privatizações de empresas e venda de imóveis.

A medida, que alcança as finanças do governo federal, Estados e municípios, pode colocar o Brasil numa nova geração de regras fiscais que já é adotada em vários países, na avaliação da equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes.

A ideia é que a dívida passe a ser o principal “termômetro” fiscal e ajude também a aumentar a potência da política de juros do Banco Central, garantindo maior previsibilidade para o endividamento público.

Para entrar em vigor, uma lei complementar precisa ainda ser aprovada com a regulamentação dos mecanismos de funcionamento da nova âncora, apontando uma trajetória para o alcance da dívida em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). A ideia do Ministério da Economia é não demorar com o envio do projeto ao Congresso.

A própria emenda diz que a lei complementar pode autorizar a aplicação dos mesmos gatilhos (medidas de corte de despesas) já previstos, como o congelamento de salários dos servidores.

A nova âncora vai conviver e se interligar com as outras três regras fiscais: teto de gastos, meta de resultado primário e a regra de ouro. O teto limita o crescimento das despesas à variação da inflação; a meta de resultado primário é a diferença entre receitas e despesas, menos o pagamento de juros. Já a regra de ouro impede que o governo se endivide para pagar gastos correntes, como salários e custeio da máquina.

O secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, disse ao Estadão que a aprovação da PEC garantiu um arcabouço para o controle das contas públicas melhor do que havia antes. Rodrigues listou 12 medidas (veja acima) que formam a “espinha dorsal” do reforço fiscal da nova emenda constitucional, que inclui também medidas que desarmam “bombas fiscais” para o futuro.

 

‘Conversa de regras’. As atuais três regras vão ter de conversar tendo como referencial a dívida pública, explicou o secretário. Segundo ele, a lei complementar é que vai definir os parâmetros de como a ancoragem da dívida será feita. Hoje, a dívida bruta do governo está em 89,7% do PIB (o último dado disponível é de janeiro). Qual o parâmetro para que a torne sustentável e a sua trajetória são o que a regulamentação vai detalhar.

“Um indicador que temos é o nível médio do endividamento hoje que é da ordem de 51% dos países emergentes que têm grau de investimento”, disse. No melhor momento da série do Banco Central, em dezembro de 2013, a dívida pública brasileira chegou a 51,5% do PIB.

Entre os parâmetros para definir a meta de endividamento está o tamanho que o caixa do Tesouro tem de ter para assegurar a confiabilidade na gestão da dívida.

“A nova âncora traz para o Brasil o que há de melhor em práticas de regra fiscal que existe no mundo e recomendadas também pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)”, afirmou Daniel Borges, diretor de programa do Ministério da Economia, que trabalhou na elaboração da proposta.

Borges explicou que hoje o governo calcula a meta de resultado primário com o “insumo” do teto de gastos para depois fazer as projeções de dívida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A dívida está no final da linha. O que se quer é inverter esse processo. Nada muda, segundo ele, na meta fiscal e no teto de gastos. Já a regra de ouro deve ser aprimorada na regulamentação da nova meta de dívida, antecipou o secretário Waldery Rodrigues.

O coordenador-geral de estudos econômico-fiscais do Tesouro, Rafael Araújo, compara a nova âncora a um instrumento de controle do nível de endividamento equivalente ao que faz o regime de meta de inflação dando clareza para a trajetória futura. O governo define um parâmetro para a alta dos preços e o Banco Central calibra os juros para alcançá-lo.

Ex-secretário do Tesouro, Carlos Kawall disse que medida incluída segue estudo feito pela equipe do Tesouro para evoluir para uma regra que combine superávit primário com meta de dívida/pib. “Acho positivo e me parece que a ideia é evoluir nessa direção pós-teto de gastos. Mas não vejo mudança no curto prazo”, disse o atual diretor do Asa Investments. Para ele, a medida depende da lei complementar e não vai avançar antes da eleição.

Coordenador do Observatório Fiscal do IBRE-FGV, Manoel Pires, diz que a previsão de limite de dívida já existe na Lei de Responsabilidade Fiscal e nunca avançou: “O governo está tentando dar uma renovada nesse debate para ver se consegue avançar para aprovar uma legislação mais completa”. Para ele, é preciso acompanhar no detalhe a regulamentação.

 

Renovar legislação

“O governo está tentando dar uma renovada nesse debate para ver se consegue avançar para aprovar uma legislação mais completa.”

Manoel Pires

OBSERVATÓRIO FISCAL DO IBRE-FGV

 

GANHOS FISCAIS

Principais medidas de reforço fiscal e desarmamento de bombas para o controle das contas

• Precatórios

Fim da linha de crédito de R$ 117 bilhões que a União teria de bancar para Estados e municípios pagarem precatórios (valores devidos a pessoas físicas ou empresas após sentença definitiva na Justiça)

 

• Lei Kandir

Garante segurança jurídica ao fim da compensação aos Estados da Lei Kandir, que desonerou as exportações do ICMS

 

• Calamidade pública

Estabelece competência privativa ao presidente da República de propor ao Congresso a decretação de calamidade pública de âmbito nacional. O Congresso não poderá mais fazer de forma unilateral

 

• Fundos

Possibilidade de utilização do superávit financeiro dos fundos, por três anos, para pagamento de dívida. Um valor superior a R$ 100 bilhões que vai ajudar na gestão da dívida

 

• Gatilhos

Regulamenta o acionamento dos gatilhos do teto de gastos (regra constitucional que impede que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação) pelo governo federal

 

• Âncora

Inclusão de novo arcabouço fiscal À dívida como sua principal âncora

 

• Políticas públicas

Previsão constitucional de avaliação dos programas de políticas públicas, como por exemplo, o Bolsa Família. O Orçamento terá de levar em conta a avaliação

 

• Despesas x receitas

Permite que os chefes dos Estados e municípios acionem automaticamente gatilhos (medidas de cortes de gastos) quando as despesas correntes ultrapassem 95% das receitas correntes

 

• Maquiagem fiscal

Inclusão expressa de despesas com pensionistas no limite de despesas de pessoal acabando com maquiagem contábil nas contas dos Estados e municípios para evitar o estouro do limite

 

• Medidas de ajuste

Proíbe a concessão de empréstimos e garantias para Estados e municípios que não adotem medidas de ajustes durante a calamidade nacional

 

• Repasses duodecimais

Veda a transferência para fundos dos repasses duodecimais ( fatias da receita prevista no Orçamento que são repassadas mensalmente, sem prejuízo) dos demais Poderes. O superávit desses fundos é restituído ao Tesouro. A medida evita que esses fundos de Legislativo e Judiciário tenham sobra de dinheiro enquanto o Executivo passa por dificuldades

 

• Tributos

Plano de redução gradual dos incentivos e benefícios de natureza tributária (subsídios, isenções e desonerações) para 2% do PIB em 8 anos (o patamar atual é de aproximadamente 4,2% do PIB)