O Estado de São Paulo, n. 46538, 18/03/2021. Metrópole. p.A16

Com mais de 2 mil mortes em média por dia, País chega a maior colapso sanitário

Roberta Jansen/ RIO

A média móvel diária de mortes por covid-19 no Brasil ficou, ontem, pela primeira vez, acima de 2 mil, de acordo com dados reunidos pelo consórcio de veículos de imprensa – foi o 19.º recorde consecutivo e o número é 52,4% maior se comparado com o dado registrado há apenas 14 dias. “O maior colapso sanitário e hospitalar da história do Brasil” – como classificou a Fiocruz – se caracteriza pela reunião de diversos fatores que levam à tragédia iminente.

O número de casos e mortes continua crescendo exponencialmente, as UTIS estão chegando ao limite máximo de internação, pessoas já estão morrendo sem atendimento médico e a vacinação vai em ritmo muito lento. Para piorar, a crise acontece simultaneamente em todo o País, impedindo transferências de pacientes.

Divulgado em caráter extraordinário na noite de terça-feira, e atualizado ontem, o boletim do Observatório Covid-19 Fiocruz revelou em números a situação extremamente crítica enfrentada pelo País. Das 27 unidades da federação, 25 Estados e o Distrito Federal estão com taxas de ocupação dos leitos de UTI covid iguais ou superiores a 80% – a única exceção é Roraima, com taxa de 73%. Em 15 delas, a taxa ultrapassa os 90%. Em relação às capitais, 26 apresentam porcentuais iguais ou superiores a 80% – em 19, o número ultrapassa 90%.

“Esta é a primeira vez que temos uma crise sistêmica em todo o País, com praticamente todos os Estados e as maiores capitais em situação extremamente crítica”, explicou o coordenador do Observatório Covid-19, Carlos Machado de Freitas. “Os colapsos do sistema de saúde que já enfrentamos antes sempre foram locais, no máximo estaduais, como o caso dos imigrantes haitianos e venezuelanos em Roraima, os desastres na região serrana de Santa Catarina, um grande número de casos de dengue e de zika no Rio.”

Ao longo do ano passado, como lembra Freitas, foi possível remanejar pacientes de covid19 para outros municípios ou Estados. Agora, no entanto, o que os especialistas chamam de “sincronização da epidemia” fez a doença avançar de forma simultânea em todo o País. Por isso, até as internações eletivas estão paralisadas na maior parte dos hospitais do País.” E a Fiocruz diz que não é simples ampliar o número de leitos para dar vazão ao colapso. Isso demanda contratação e treinamento de especialistas. Além disso, os atuais profissionais estão exaustos após um ano.

Sem ter como dormir. O número de casos de covid-19 está crescendo a uma taxa de 1,5% ao dia, enquanto o número de mortes aumenta a 2,6% ao dia, valores considerados muito elevados. Em 24 horas, o País registrou 2.736 novas mortes pela doença, segundo maior número da pandemia (só em São Paulo, foram 617, novo recorde). Na análise de Freitas, que é especialista em saúde pública, essa situação deve levar a grande quantidade de casos graves da doença, que exigem internação. “A situação é crítica e preocupante, nos deixa a todos sem dormir”, afirmou o especialista.

Segundo ele, nem a adoção de medidas de distanciamento social é suficiente para deter o avanço da crise. A vacinação, que continua em ritmo muito lento, só conterá a pandemia a médio prazo – ontem, o número de imunizados com a primeira dose chegou a 10.713.615, ou 5,06% da população. “O distanciamento físico e social tem de ser adotado durante toda a epidemia”, afirmou. “Mas a situação que temos hoje indica que a maior parte dos Estados terá de adotar medidas mais rigorosas, de bloqueio e lockdown, acompanhadas de outras medidas sociais, pois já temos pessoas passando fome.”

Freitas lembrou ainda que as medidas mais rigorosas só começam a surtir efeito após 15 dias, como demonstram as experiências de vários outros países. “Sem a adoção de bloqueio e lockdown, vamos ter mais pessoas morrendo sem assistência na porta dos hospitais e até mesmo em casa”, disse. “Isso é muito sério, não podemos ter pessoas morrendo por falta de assistência: é tarefa do governo organizar e se antecipar. As ações não podem ser apenas reativas”, disse. / COLABOROU MARCO ANTÔNIO CARVALHO

'LÁ SE FORAM OS TRÊS, UM APÓS O OUTRO'

Taboão da Serra

Quando a reportagem conseguiu contato ontem com a auxiliar de farmácia Pâmela Rivitti, de 30 anos, de Taboão da Serra, para falar sobre a morte da avó, Dinéia Martins Firmino, de 74 anos, no dia 6, na fila de espera por leito de UTI, a jovem estava em prantos. Ela tinha acabado de receber a notícia da morte de seu avô, José Firmino, de 76, também vítima da covid. Na segunda-feira, já havia morrido pela mesma causa seu tio, Samuel Firmino, de 49 anos. "Não estou conseguindo acreditar, lá se foram os três, um após o outro", disse.

Dinéia morreu na UPA Akira Tada à espera de vaga em UTI. Ela era diabética e, segundo Pamela, após a morte houve uma mobilização para conseguir vagas para seu avô e seu tio, também internados na unidade, que não tem estrutura de UTI. "Meu tio conseguiu a vaga no Hospital de Parelheiros e até melhorou. A gente achava que ele ia sair de lá, mas teve piora e não resistiu. Ele tinha diabete, mas tratava e estava saudável até pegar a covid."

O avô de Pamela estava havia duas semanas e ficou à espera de vaga na UTI por uma semana, quando, segundo ela, seu quadro piorou. "Se tivesse consegui- do a vaga antes, quem sabe?"

A prefeitura de Taboão da Serra informou ter contabilizado 14 mortes de pacientes que aguardavam vagas em UTI, além de mais cinco óbitos em que os pacientes já chegaram em estado grave e morreram em horas. / JOSÉ MARIA TOMAZELA 

ESPEROU POR 13H E MORREU NA AMBULÂNCIA

Rio Grande do Sul

Uma espera de 13 horas e 30 minutos em busca de um leito de UTI determinou a morte de João Conte, 81 anos, morador de Boqueirão do Leão, no interior do Rio Grande do Sul. Diagnosticado com covid-19 no dia 27 de fevereiro, o idoso passou os primeiros dias fazendo o tratamento em casa. O quadro se agravou e ele precisou ser internado no hospital da cidade no dia 4 de março. Um dia após a internação, o quadro foi piorando e na madrugada de 6 de março iniciou-se a pequena via-crúcis da família em busca de um leito de UTI.

Joel André Conte, de 53 anos, filho de João, lembra a busca incessante. "Depois de ele passar mal na sexta, dia 5, começou a novela para conseguir uma internação. Tentamos com o convênio e em contato com outras pessoas, fizemos tudo que era possível desde às 3 h, mas a autorização só chegou às 16h30."

A internação de João foi autorizada no Hospital Bruno Born, na cidade de Lajeado, a cerca de 48 quilômetros de Boqueirão. O alívio foi momentâneo, já que a ambulância chegou ao hospital para levar João só às 18h30. Mais uma vez, a esperança da família foi substituída pela angústia, pois João precisaria ser entubado antes de ser removido para o HBB. Foram duas horas de trabalho da equipe médica, composta por seis pessoas. Mas o coração do homem de 81 anos, pai de dois filhos, casado há 54 anos, não resistiu.

Às 20h10 do dia 6, João teve parada cardíaca e morreu na ambulância. "Meu pai pagou plano de saúde para que quando precisasse tivesse atendimento, mas a gente sabe que a situação a situação é complicada e os médicos fazem escolhas, se tem um paciente de 53 anos precisando de UTI e um de 81, a prioridade será de quem tem mais tempo de vida", diz Joel.

Agora, Joel torce para que a mãe, de 73 anos, resista. Ela está com covid-19, mas, diferentemente do pai, ainda não foi hospitalizada. A alternativa encontrada pela família e o plano de saúde foi adotar o sistema de home care, com atendimento em casa./ EDUARDO AMARAL, ESPECIAL PARA O ESTADÃO