Correio Braziliense, n. 20607, 24/10/2019. Artigos, p.13

Presunção de não culpabilidade e execução da sentença condenatória

Carlos Mário da Silva Velloso 


A execução da sentença condenatória após sua confirmação pelo tribunal de 2º grau tem sido a regra em países de boa prática democrática. No Brasil, era esse o entendimento desde os anos 1940 até 2009, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reformulou a jurisprudência numa interpretação gramatical da presunção de não culpabilidade inscrita no art. 5º, LVII, da Constituição, a dispor que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

A reformulação, entretanto, durou pouco tempo. Em 2016, o Supremo retornou à jurisprudência tradicional, voltou a entender cabível a execução da sentença condenatória após a confirmação pela segunda instância. É que da cláusula constitucional mencionada não decorre a inviabilidade do início da execução da sentença penal condenatória após a confirmação desta pelo 2º grau.

O que a Constituição garante é o duplo grau de jurisdição, ou “o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (CF, art. 5º, LV), na forma da lei processual, que estabelece que os recursos que podem ser interpostos, a partir daí, não examinam a prova, não examinam, portanto, a justiça da decisão. A garantia constitucional da presunção de não culpabilidade não pode ser interpretada isoladamente, mas em conjunto com as demais normas constitucionais, dado que o direito não se interpreta “em tiras, em pedaços”, lembra o ministro Eros Grau.

Em trabalho de doutrina, Luiza Frischeisen, Mônica Garcia e Fábio Gusman assinalam que, anteriormente à Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal entendia incompatível o efeito suspensivo com o recurso extraordinário, decidindo que “o Recurso Extraordinário não importa a suspensão dos efeitos da sentença condenatória”. Esse mesmo entendimento o STF adotou após a Constituição de 1988, interpretando o princípio da presunção de inocência em conformidade com o sistema constitucional.

Em 2005, a ministra Ellen Gracie, votando pela execução da sentença após a condenação no 2º grau, registrou que verificara, no direito comparado, a inexistência da exigência do trânsito em julgado para a execução da condenação confirmada no 2º grau (HC 85.886). A exigência inaugurada pelo Supremo, a partir de 2009, não tinha, portanto, similar em países de boa prática democrática. Na Alemanha, a presunção de inocência não é expressa no texto constitucional. Todavia, o princípio da presunção de inocência tem extrema relevância. A despeito, no entanto, dessa cultura de proteção ao princípio da presunção de inocência, “o Código de Processo Alemão prevê efeito suspensivo apenas para alguns recursos”.

Na Espanha, a Constituição, art. 24, 2, dispõe que “todas as pessoas têm o direito de [...] serem presumidas inocentes”. Todavia, a sentença condenatória é plenamente executável, mesmo que outros recursos estejam tramitando. A Constituição francesa adotou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que, art. 9º, assegura que todas as pessoas são inocentes até que sejam declaradas culpadas. Não obstante, o Código de Processo Penal (...) francês contém, art. 465, as hipóteses em que o tribunal pode expedir mandado de prisão, mesmo quando pendentes outros recursos.

Nos Estados Unidos, a presunção de inocência decorre do direito ao “due process”. Mas o direito de o acusado aguardar o julgamento dos recursos em liberdade está condicionado ao direito de fiança. Em diversas hipóteses, inexiste direito à fiança, de modo que o acusado passa a cumprir a pena a partir da decisão do juiz de 1º grau. Em Portugal, o princípio da presunção de inocência está inscrito na Constituição. A doutrina portuguesa, porém, veicula que “a garantia da presunção de inocência não é óbice à execução imediata da condenação”. O Tribunal Constitucional decide que o recurso dirigido ao tribunal não possui efeito suspensivo, dispondo que “tratar a presunção de inocência de forma absoluta corresponderia a impedir a execução de qualquer medida privativa de liberdade, mesmo as cautelares.”

Cuidando do tema, no voto que proferiu no HC 84.078-MG, o saudoso ministro Menezes Direito assinalou que  “a prisão na pendência de recurso é admitida em sistemas de países reconhecidamente liberais, como os Estados Unidos da América (Subseção “b” do § 3.582, D, Capítulo 227, Parte II, Título 18 do US Code), o Canadá (arts. 679 e 816 do Criminal Code) e a França (art. 367 do Code de Procédure Pénale). Nos Estados Unidos, o sistema é bem claro ao admitir o imediato início do cumprimento da pena, sendo certo que a interposição de recurso de revisão de que decorreria a possibilidade de alteração não é suficiente para obstar seu imediato cumprimento.”

No estudo que Luiza Frischeisen, Mônica Garcia e Fábio Gusman elaboraram a respeito do tema, mencionado, aliás, no voto do ministro Menezes Direito, no julgamento do HC 84.078-MG, esclareceu-se, no tocante à Inglaterra, que “o direito inglês é arauto mundial dos direitos civis que resguardam o indivíduo do arbítrio estatal”, sendo possível afirmar que “as ideias iniciais do princípio da presunção de inocência em todo o mundo surgiram na Inglaterra, no corpo da Magna Carta de 1215”, anota Canotilho. É garantido ao recorrente a liberdade mediante pagamento de fiança enquanto a Corte examina o mérito do recurso. Tal direito, contudo, não é absoluto e não é garantido em todos os casos.

Na Argentina, esclarecem Frischeisen, Garcia e Gusman, a Constituição Nacional, art. 18, consagra o princípio da presunção de inocência, o que “não impede, porém, que a execução penal possa ser iniciada antes do trânsito em julgado da decisão condenatória”.

A vítima deve ser protegida. Quando se trata de crimes contra a vida, é uma lástima. Exemplo: há 16 anos, os responsáveis pela chacina de Unaí estão em liberdade, apesar de condenados no 2º grau. As famílias das vítimas clamam por justiça, e os assassinos aguardam em liberdade, interpondo recursos e mais recursos, buscando, com a lentidão processual, a prescrição da ação penal. O pano de fundo desse teatro do absurdo é a presunção de inocência interpretada isoladamente, de forma absoluta. No caso de crimes contra a honra, é desanimador. Os prazos prescricionais são reduzidos. A maioria cai na vala comum da prescrição, em razão do elevado número de recursos aliado à lentidão processual.

Crimes graves contra a honra acabam sem reparação, com o descrédito da Justiça. No voto que proferiu quando do julgamento do HC 84.078-MG, o ministro Menezes Direito esclareceu, com base em convenções internacionais, como o Pacto de São José da Costa Rica, que “a execução provisória da pena é também uma forma de proteção da vítima ou de seus familiares especialmente em crimes contra a vida em que a vítima é uma criança ou um adolescente como na pornografia infantil ou na exploração sexual de meninos e meninas”. E acentuou: “Ademais, por fim, vale ressaltar que essa orientação sedimentada na jurisprudência da Suprema Corte representa um mecanismo inibitório de manobras de toda sorte que se destinam a procrastinar os julgamentos e impedir a execução da condenação dos réus, entre elas, a procura desenfreada da prescrição das penas”.

Em suma: a execução da sentença condenatória pode ter início após a confirmação da sentença em segundo grau. Assim decidia o Supremo Tribunal Federal até 2009 e em 2016. A presunção de não culpabilidade não implica, só por só, impedimento da execução penal. É que dispositivos constitucionais não se interpretam isoladamente e sim no conjunto. O que a Constituição garante é o duplo grau de jurisdição, ou o contraditório e a ampla defesa, com os recursos assegurados na lei processual, que dispõe que os recursos especial (STJ) e extraordinário (STF) não têm efeito suspensivo. Mas a lei é sábia. Interpostos tais recursos, ocorrendo os pressupostos da cautelar, para a concessão de efeito suspensivo — fumus boni júri e o periculum in mora — defere-se esta, concedendo-se efeito suspensivo aos recursos. O efeito não suspensivo do recurso especial e do recurso extraordinário é a regra; a suspensividade (...)

CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO
Advogado, foi presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)

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