Título: Além do Fato: Agiotagem legalizada
Autor: Garcia D'Ávila Pires de Carvalho e Albuquerque
Fonte: Jornal do Brasil, 03/02/2005, Economia & Negócios, p. A20
O artigo 462 da Consolidação das Leis do Trabalho, em harmonia com o artigo 7º, inciso X da Constituição Federal, consagrou o princípio da intangibilidade do salário ao dispor que ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários dos empregados, salvo quando este resultar de adiantamento, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo. Trata-se de princípio universal, insculpido na Convenção nº 95, adotada na 32ª sessão da Conferência Internacional do Trabalho de 1944, incorporada formalmente ao direito brasileiro em 1957.
Contudo, foi sancionada a Lei n.º 10.820, de 17 de dezembro de 2003, que faculta aos empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho autorizarem, de forma irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento dos valores referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil, quando previstos nos respectivos contratos.
A fundamentação ¿ na verdade o pretexto ¿ que se utilizou para oferecer às instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil a possibilidade de descontar diretamente do salário ¿ de forma absolutamente privilegiada ¿ parcelas provenientes de empréstimos celebrados por empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho consistiu em que tal garantia permitiria aos agentes financeiros estipular juros menores em relação aos praticados pelo mercado.
Ora, não obstante a perspectiva oferecida ao empregado pela legislação focalizada de obter empréstimos a juros menores, a realidade demonstra que o obreiro, premido pela necessidade, contrai sucessivos empréstimos que, em virtude do sempre crescente aumento do custo de vida e de políticas salariais invariavelmente restritivas, não conseguirá honrar.
Vale lembrar que, a despeito de apresentarem índices menores do que os usualmente estipulados pelo mercado, os juros correspondentes aos empréstimos autorizados pela Lei n.º 10.820, de 17 de dezembro de 2003 oscilam entre 3% e 6%, ao mês, patamar muito acima do que o empregado ordinariamente aufere à guisa de aumento salarial, o que nos permite concluir que, excetuando-se circunstâncias especiais como o recebimento de herança ou sorte no jogo, o trabalhador jamais reunirá condições para quitar o empréstimo contraído.
De outra sorte, convém enfatizar que o salário representa a principal fonte de receita da família, sendo certo que o seu comprometimento quase que integral antes mesmo de chegar ao destinatário natural constitui fator de grave insegurança social, pois alcança não só o empregado, como também o grupo familiar por ele sustentado.
Portanto, se havia algum vestígio de interesse social a justificar a sanção da lei focalizada, a realidade, como visto, incumbiu-se de dissipá-lo, remanescendo, apenas, o interesse das instituições financeiras que, incontinenti, introduziram agentes em órgãos públicos e entidades privadas para intermediar empréstimos com os respectivos servidores e empregados.
Surge, assim, a nefasta figura do agiota legalizado que, sob o amparo da lei, negocia empréstimos para instituições financeiras que, em visível afronta ao princípio da proteção ao salário, usufruirão do doce privilégio de consignar os descontos alusivos aos empréstimos na folha de pagamento dos empregados.
Cuida-se, na verdade, de mais um passo na direção da total desregulamentação das relações de trabalho, anseio indecoroso e indisfarçado de conhecidos segmentos da sociedade que, obstinadamente, espreitam oportunidades para auferir lucros ainda maiores.
Diante do exposto, propugna-se pela retirada da Lei n.º 10.820, de 17 de dezembro de 2003 do sistema jurídico brasileiro, por absoluta incompatibilidade com o princípio da proteção ao salário expresso nos artigos 7º, inciso X da Constituição Federal e 462 da Consolidação das Leis do Trabalho.
*Advogado e professor de Processo Civil e Processo do Trabalho da Universidade Cândido Mendes