Correio Braziliense, n. 20604, 21/10/2019. Mundo, p. 12

Elas exigem seus direitos

Rodrigo Craveiro


A ex-primeira-dama argentina Eva Perón lutava contra um câncer quando lançou a obra La razón de mi vida (A razão da minha vida), em 15 de outubro de 1951. “Sonho sempre com o dia em que uma mulher será o que deve ser: rainha e senhora de uma família digna, livre de qualquer necessidade econômica premente”, escreveu. Nove meses depois, Evita sucumbiu ao câncer. Quase sete décadas se passaram e o feminismo da Argentina aproveita as eleições gerais do próximo domingo para impor uma agenda cujo principal assunto vai além do que Eva pensava, e é visto com reservas pelo atual presidente, Mauricio Macri: a legalização do aborto. A julgar pelas pesquisas, são grandes as chances de o peronismo retornar ao poder com a chapa Frente de Todos, composta pelo advogado Alberto Fernández e pela ex-presidente Cristina Kirchner.

O movimento feminista, que ganhou força com a marcha multitudinária Ni una menos, entre 2015 e 2016, se articula para ganhar espaço no espectro político argentino. Jornalista, ativista feminista e impulsionadora do movimento, Mariana Carbajal lembrou ao Correio que Fernández se pronunciou a favor da despenalização do aborto e do avanço em direção à legalização da interrupção da gravidez. Durante o debate com Macri, no último dia 13, ele foi bastante claro: “Na Argentina, os abortos ocorrem e continuam a punir as mulheres. Tudo que se faz é criminalizar a conduta e transformar tudo em clandestinidade. Com a legalização, daremos oportunidades às mulheres pobres. Terminemos com a hipocrisia”, declarou o candidato peronista.

“Esperamos que o tema seja um dos principais da agenda legislativa de 2020”, disse a jornalista, autora dos livros Yo te creo, hermana (2019); Maltratadas: Violencia de género en las relaciones de pareja (2014) e El aborto en debate: Aportes para una discusión pendiente (2009). Carbajal entende que o debate travado pelo Congresso, no ano passado, favoreceu a despenalização social do aborto. Segundo ela, o assunto deixou de ser tabu e passou a ser discutido pelos meios de comunicação e dentro dos lares. “Esse tem sido um aspecto muito positivo. Em termos legais, o aborto está permitido, desde 1921, para casos de risco à vida ou à saúde de mulher ou após estupro.”

Uma decisão de 2012 da Corte Suprema exortou os governos das províncias a adotarem protocolos de atenção. A maioria os aplica, ainda que persistam resistências de alguns setores médicos, segundo a ativista. “De toda forma, cada vez se garante mais a atenção aos abortos legais. Ao mesmo tempo, um laboratório estatal começou a produzir o misoprostol, a droga usada para abortos com medicamentos, o que vai baratear o custo do procedimento para o setor público.” As estatísticas apontam que, na Argentina, se realizam 1.300 abortos por dia. Entre 1985 e 2016, 3.040 mulheres morreram.

Solução gradual

A advogada feminista Sabrina Cartabia, que defende os interesses da atriz Thelma Fardín (ela acusa o ator Juan Darthés de estuprá-la, quando menor de idade), afirmou ao Correio que se romperam travas culturais em relação ao aborto com os debates no Congresso, depois de sete tentativas malsucedidas. “Estamos a poucos votos de mudar a lei. Alberto Fernández defendeu uma solução gradual para o aborto. Em um primeiro momento, seria a mudança do Código Penal, seguida pela implementação de mais acessos, rumo à legalização”, disse. Cartabia também aponta o feminicídio como um assunto de interesse social enorme, com o qual o próximo chefe de Estado será obrigado a lidar. “A cada 30 horas, uma mulher é morta na Argentina. São cerca de 300 assassinatos por ano. O governo Macri não tomou qualquer medida para reverter esse quadro”, criticou.

Para Carbajal, ainda que a Argentina não registre as mais altas taxas de feminicídio da América Latina, a violência machista segue como grave tema. “As respostas do governo não têm sido nem integrais nem efetivas. As autoridades estimulam as denúncias por parte das mulheres, mas depois as abandonam. É necessário que se garanta em toda o país a assistência jurídica gratuita, e que a Justiça incorpore a perspectiva de gênero. Muitas vezes, nos tribunais ou nas delegacias, não se acredita nas mulheres que denunciam ou não se ditam medidas que as protejam dos algozes”, lamentou.

Ela espera que o próximo ocupante da Casa Rosada promova a educação sexual integral, como forma de desarmar o machismo entre as novas gerações, e garanta a independência econômica das mulheres. Nas eleições do próximo domingo, a Argentina estreará a lei de paridade a nível nacional. Ela obriga os partidos políticos a apresentarem listas com metade dos integrantes de cada gênero. No entanto, também será a primeira vez que o país não contará com uma mulher disputando a Casa Rosada.

Pontos de vista

Por Mariana Carbajal

Retrocesso na agenda

“A gestão do presidente Maurício Macri significou um retrocesso para a agenda feminista: em primeiro lugar, degradou o Ministério da Saúde e o transformou em secretaria. Ficou claro, naqueles dias, que Macri impulsionou o debate sobre o aborto, seguramente para desviar a atenção em momentos nos quais a crise econômica se aprofundava, mas deu ordem aos legisladores de seu partido para que fizessem tudo possível para que não se aprovasse a legalização. Agora, vemos isso com mais clareza, dada a campanha com o slogan ‘Salvemos as duas vidas’, o mesmo utilizado por grupos antidireitos. Durante o governo Macri, não se impulsionou a educação sexual integral, prevista em lei desde 2007, e esta é uma reclamação histórica do movimento feminista.”

Jornalista, ativista feminista argentina, impulsionadora do movimento Ni Una Menos

Por Sabrina Cartabia

Situação crítica

“O atual governo não desenvolveu políticas públicas eficientes, e subexecutou de maneira muito grave o orçamento que existia voltada aos direitos das mulheres. Nós estamos em uma situação crítica. É verdade que, nós, mulheres, não fomos um tema central na gestão de Mauricio Macri. Não fomos beneficiadas por esse governo.”

Advogada, feminista argentina