Título: Reforma Universitária do MEC
Autor: Rodrigo Dantas*
Fonte: Jornal do Brasil, 03/02/2005, Opinião, p. D2

Num mundo em que a lógica do mercado é apresentada como forma ''natural'' das relações sociais, a interação mercantil assume a condição de forma da sociabilidade e o dinheiro se afirma como nexo universal, o poder político e todas as esferas da vida social são progressivamente alienadas ao que Marx pensou como a ''subjetividade única e global do capital''. Insere-se neste quadro o processo de mercantilização da educação, da produção de conhecimento, do trabalho docente e da universidade, inspirado pelas diretrizes do Banco Mundial e materializado pela adesão dos governos de plantão à agenda de ''reformas'' do Banco.

Suas faces mais evidentes são: a) a expansão das empresas privadas de ensino superior, que substituem a riqueza da formação e da vida universitária pela precária preparação de mão-de-obra qualificada para o mercado, transformando a educação numa mercadoria a que têm acesso apenas os que por ela podem pagar, processo que se pretende tornar irreversível pela abertura do setor de educação ao capital estrangeiro, defendida pelos EUA e seus aliados na OMC e presente no anteprojeto de reforma universitária apresentado pelo governo Lula; b) a conversão progressiva da universidade pública numa instituição de mercado, numa organização prestadora de serviços cuja ''autonomia'' para gerar fontes de renda pela ''livre interação mercantil'' trabalha para transformá-la num balcão de negócios, constituindo-a como espaço de sociabilidade dominado pela lógica corruptora dos interesses privados.

O modus operandi desta conversão é sempre mais ou menos o mesmo: começa-se pelo arrocho salarial de docentes e técnicos e pelo corte das verbas públicas para o financiamento da universidade; pressionados pela insuficiência de recursos públicos, a universidade e os docentes passam a buscar financiamento privado, comprometendo a gratuidade dos cursos, mercantilizando a extensão universitária e condicionando cada vez mais a produção de conhecimento aos recursos e interesses privados que a financiam e orientam. O conjunto destes processos, induzidos pela ação governamental, compromete a gestão transparente e democrática, a liberdade acadêmica e a autonomia universitária, minando a essência da universidade e sua vocação social para interagir com as necessidades da maior parte da população.

Tudo isso preparou o terreno, ao longo dos anos, para a apresentação do anteprojeto de reforma universitária pelo governo. O modelo de universidade que dele emerge, em articulação com as políticas implementadas ao longo de 2004, revela sua afinidade com a agenda do Banco e sua coerência com as políticas privatistas desenvolvidas pelo MEC desde Collor e Cardoso. Seus eixos centrais são: a) fomento do capitalismo acadêmico no contexto da concepção da universidade como prestadora de serviços e de sua progressiva subordinação ao mercado e às empresas privadas (Lei de Inovação Tecnológica); b) vinculação indissociável entre PDI (Plano de Desenvolvimento Institucional, apresentado no anteprojeto como contrato de gestão que as instituições públicas e privadas estabelecem com o MEC para concorrer a verbas públicas para sua expansão), financiamento, avaliação e autonomia; c) expansão da oferta de ensino superior centrada nas empresas privadas mediante financiamento público (ProUni, FIES e PDI); d) avaliações de qualidade inspiradas nas teorias do capital humano, que buscam regular todos os aspectos do ensino superior, condicionam a liberdade acadêmica e a autonomia universitária, estimulam a competitividade fratricida como forma da sociabilidade e concentram poderes despóticos e potencialmente corruptores nas mãos do MEC (Sinaes/Conaes); e) programas de estímulo à docência e política salarial baseada em gratificações produtivistas e na remuneração por prestação de serviços; g) democratização do acesso não por medidas universais, mas por políticas compensatórias e focalizadas.

A universidade pública, gratuita e de qualidade, locus de produção, reprodução e sistematização do conhecimento socialmente produzido e formação dos profissionais responsáveis pelas funções centrais do processo de produção e reprodução social da vida e base para qualquer projeto de desenvolvimento social, humano e econômico do país, se acha hoje gravemente ameaçada. Ao longo deste ano, em que o projeto de reforma do MEC vai ao Congresso, cabe a nós, educadores, sensibilizar a sociedade e seus representantes no Legislativo para a necessidade de preservar a universidade pública brasileira.

*Professor de Filosofia na UnB e Presidente da ADUnB (Associação dos Docentes da UnB)