O Estado de São Paulo, n. 46544, 24/03/2021. Política. p.A4

Cármen Lúcia muda voto e STF declara Moro parcial

Lava Jato. Segunda Turma da Corte conclui que Moro atuou com parcialidade ao condenar Lula na ação do triplex; posição da ministra foi decisiva para derrota significativa da operação

Rafael Moraes Moura

Amanda Pupo /BRASÍLIA

Paulo Roberto Netto   

Em uma das maiores derrotas da história da Lava Jato, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ontem que o ex-juiz Sérgio Moro foi parcial ao condenar o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva na ação do triplex do Guarujá. O placar do julgamento sofreu uma reviravolta com a mudança de entendimento da ministra Cármen Lúcia, que alterou o voto proferido em dezembro de 2018, quando a discussão foi iniciada. Com o julgamento da Segunda Turma, a ação do triplex agora terá de voltar à estaca zero e as decisões tomadas por Moro no caso serão anuladas.

A decisão fortalece o argumento de Lula de que foi vítima da perseguição do juiz. Desde que o relator da Lava Jato no STF, Edson Fachin, anulou as condenações de Lula e determinou o envio de quatro ações contra ele – inclusive a do triplex de Guarujá – à Justiça Federal do Distrito Federal, o petista não é mais ficha suja. Com isso, pode ser candidato à Presidência, em 2022. Agora, o plenário do Supremo deve decidir até o início de abril se mantém ou não a decisão que tornou Lula elegível.

O receio de investigadores e também de Fachin é que a declaração da suspeição de Moro provoque efeito cascata, contaminando outros processos que tiveram atuação do ex-juiz. Cármen Lúcia disse não ver essa possibilidade. "O que se discute basicamente é algo que, para mim, é basilar: todo mundo tem o direito a um julgamento justo e ao devido processo legal e à imparcialidade do julgador", afirmou a ministra, que restringiu o entendimento à questão específica de Lula na ação do triplex, para delimitar os efeitos do julgamento.

Em julho de 2017, Moro condenou o ex-presidente a nove anos e seis meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro na ação do triplex. Foi com base nessa condenação, confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), que Lula foi considerado inelegível e teve o registro de candidatura negado, em 2018.

O entendimento da Segunda Turma do STF contra Moro marca o mais forte revés da Lava Jato na Corte, que já havia derrubado dois dos principais pilares da operação: as conduções coercitivas de investigados e a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância.

Mácula. Em seu novo voto, Cármen Lúcia criticou a "espetacularização" da condução coercitiva de Lula, determinada por Moro em março de 2016, e a divulgação de conversa entre ele e a ex-presidente Dilma Rousseff, com o intuito de impedir sua nomeação para a Casa Civil, entre outros pontos. Para a ministra, esses episódios "maculam" a atuação de Moro.

Ao mudar de posição, a ministra se alinhou ao presidente da Segunda Turma do STF, Gilmar Mendes, e ao colega Ricardo Lewandowski. Os dois já haviam votado no início do mês para acolher o pedido da defesa de Lula e declarar Moro parcial.

O julgamento foi retomado ontem com a leitura do voto do ministro Kassio Nunes Marques, único indicado pelo presidente Jair Bolsonaro na Corte. Kassio se alinhou aos interesses do Palácio do Planalto ao defender entendimento que poderia minar o caminho de Lula na disputa de 2022. O magistrado votou contra as pretensões do petista, sob o argumento de que habeas corpus não é o meio processual adequado para alegar a suspeição de um juiz. Kassio também contestou o uso de mensagens obtidas por hackers, atribuídas a Moro e a procuradores de Curitiba, para reforçar as acusações de quebra da imparcialidade. Os dois pontos foram rechaçados com veemência por Gilmar Mendes após a leitura do voto do colega (mais informações ao lado).

Kassio disse que, se as mensagens fossem usadas para comprovar a parcialidade de Moro, a prática "abjeta de bisbilhotar a vida das pessoas estaria legalizada e a sociedade viveria um processo de desassossego semelhante às piores ditaduras". "Como confiar em provas fornecidas por criminosos? Será que uma perícia poderia testar que as conversas interceptadas são autênticas, sem a supressão de qualquer palavra? Isso sequer foi feito. Não houve perícia."

O voto de Kassio irritou Gilmar e houve até citação ao Piauí, terra do magistrado indicado por Bolsonaro. "Todos sabem que longe de mim querer menoscabar o Piauí", afirmou Gilmar após o embate.

Com a derrota de Fachin, ficará agora com Gilmar a análise de eventuais pedidos de extensão do entendimento que beneficiou Lula a outros réus. A atuação de Moro em outra ação penal que levou à condenação do petista na Lava Jato, a do sítio de Atibaia, se restringiu ao momento inicial do processo. Coube ao então juiz aceitar a denúncia. A condenação foi assinada pela juíza Gabriela Hardt, depois que Moro largou a magistratura para assumir o cargo de ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro.

Em nota, a defesa de Lula disse que ele foi "alvejado por inúmeras ilegalidades" praticadas por Moro e que a decisão "fortalece o sistema de Justiça e a importância do devido processo legal". / COLABOROU RAYSSA MOTTA