Correio Braziliense, n. 20600, 17/10/2019. Política, p. 3

“Não é possível saber quantos serão soltos”

Ponto a ponto Gilson Dipp


O ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp diz que não há como saber quantos presos podem ser soltos, caso o Supremo Tribunal Federal (STF) derrube a possibilidade de prisão em segunda instância. E esse não é o ponto central da questão, afirma. “Há muita expectativa no mundo jurídico e político por um aspecto que já vem sendo observado e debatido há muito tempo. Essa discussão só está tendo essa repercussão toda em função, em primeiro lugar, da Lava-Jato, e, em segundo, pela possibilidade de o presidente Lula sair da prisão”, destaca Dipp.

Personagem importante de vários momentos cruciais do mundo político e jurídico do país, Gilson Dipp foi corregedor Nacional de Justiça, presidente da Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal para a elaboração do anteprojeto de reforma do Código Penal, além de coordenador da Comissão Nacional da Verdade. Também foi o idealizador das varas especializadas em julgar crimes de lavagem de dinheiro e combate ao crime organizado, nas quais atuou o atual ministro da Justiça, Sérgio Moro. O ex-ministro foi o entrevistado de ontem do programa CB.Poder, uma parceria entre a TV Brasília e o Correio Braziliense. Veja os principais pontos.

Número de solturas

O eventual fim da prisão em segunda instância não vai soltar 190 mil pessoas. Isso é terrorismo jurídico. Cada caso vai ser apreciado de acordo com o processo. Veja dois exemplos: o ex-governador Sérgio Cabral e o ex-deputado Eduardo Cunha não têm condenação com trânsito em julgado, mas não serão postos em liberdade porque estão presos por outros motivos, por requisitos que já estão na lei. Essa discussão já transcendeu os limites da sua importância. Não é possível ter a real dimensão disso. Nós não temos experiências de números, as estatísticas do CNJ são estatísticas frias. Eu não tenho a menor dúvida de que esses números não condizem com a realidade e, a partir da decisão do Supremo, seja qual for, a normalidade jurídica voltará a estar presente no debate político e jurídico brasileiro.

Lula

O caso do ex-presidente Lula também vai ser apreciado dentro das circunstâncias do processo. Ele foi preso em função da condenação do triplex do Guarujá por uma decisão do TRF4, que editou uma súmula que, com o trânsito em julgado, automaticamente iria para a prisão. A decisão do Supremo, que tinha como relator o então ministro Teori Zavascki, não disse que era automática em todos os casos a prisão em segundo grau. Poderia haver a prisão com a condenação em segundo grau. Mas há, em determinados casos, outros fundamentos para a prisão que não apenas a condenação. No caso do presidente Lula, me parece que o fundamento único foi esse e, em tese, ele poderá, sim, ser solto, como poderá ser solto através da progressão de regime.

Parcialidade de Moro

O habeas corpus que fundamenta o pedido de suspensão (de Moro) é muito anterior ao vazamento do The Intercept. A defesa juntou, e eu acho que, evidentemente, o juiz não está fora do mundo e alheio aos fatos. Esses diálogos são muito graves. Foram obtidos de forma ilícita, não podem ser usados como prova. O que eu quero dizer é que o conteúdo das interceptações nunca foi desmentido e, consequentemente, de forma direta ou, possivelmente, de forma indireta, vai influenciar, e já está influenciando, a intenção do julgador que vai examinar o habeas corpus completo.

Lava-Jato

É a operação de enfrentamento da corrupção e lavagem de dinheiro mais bem-sucedida do mundo, não tenho dúvida. Mas agora ficou claro, e não é de hoje, que muitos abusos foram cometidos, e esses excessos, talvez até pela grandiosidade da operação, ficaram muito evidentes. Com as interceptações se vê que os procuradores tinham, sim, ideologia política. E foram prisões preventivas desnecessárias e estendidas por muito tempo que geraram, muitas vezes, as delações premiadas. Tenho certeza de que, em muitos casos, as delações não foram voluntárias. Disse um ministro agora há pouco que foi a maior jogada de marketing em uma operação, mas foi bem-sucedida.

Delatores e delatados

Também está em discussão no STF o direito do réu delatado em apresentar alegações finais após o réu delator. O que vai acontecer não é apenas quanto às razões finais, é em qualquer fase, desde o início do processo. Com essa decisão, o réu delatado sempre vai ter que se manifestar depois do delator, seja no início na defesa prévia, seja nas alegações finais. Isso tem que ser aplicado na totalidade do processo.

Improbidade

A Lei da Improbidade Administrativa, de 1992, já não tem sua efetividade presente. As penas são totalmente desproporcionais. Ela pune com a mesma gravidade tipos penais mais amplos e ilícitos menos graves, sem fazer distinção. A própria Lei da Ficha Limpa tenta corrigir essa drasticidade, e a Câmara está discutindo agora uma nova norma, não tirando a drasticidade, mas dando uma racionalidade para a sua aplicação.

*Estagiária sob supervisão de Odail Figueiredo