O Estado de São Paulo, n. 46544, 24/03/2021. Política. p.A10
Bolsonaro cita vacina e é alvo de panelaços
Em quatro minutos de pronunciamento, presidente cita estimativas de imunização
Marcelo de Moraes
No dia em que o Brasil registrou mais 3.158 mortes pelo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro fez pronunciamento ontem em cadeia de rádio e televisão afirmando que o governo nunca foi contra a vacinação e prometendo que não faltarão doses para imunizar toda a população. A fala, repleta de distorções, foi acompanhada de panelaços em diversas cidades do País.
O discurso de ontem, de cerca de quatro minutos, marca um recuo no tom negacionista do alcance da pandemia e foi provocado pelo desgaste político causado pelo aumento no número de casos e mortes causadas pela doença. "Quero destacar que hoje somos o quinto país que mais vacinou no mundo", disse o presidente, usando um dado que representa apenas o número absoluto de vacinas aplicadas e não o proporcional em relação ao tamanho da população do País.
Bolsonaro ainda usou a narrativa de que seu governo tomou ações para garantir vacinas "logo no início da pandemia". Durante meses, Bolsonaro duvidou da eficácia das vacinas e chegou a barrar a decisão de comprar a Coronavac, mesmo depois que o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, decidiu adquirir a vacina.
No discurso, que foi redigido com o auxílio do ministro das Comunicações, Fábio Faria, e com o chefe da Secom, almirante Flávio Rocha, Bolsonaro assume a promessa de que as vacinas serão garantidas a todos os brasileiros. "Quero tranquilizar o povo brasileiro, e afirmar que as vacinas estão garantidas. Ao final do ano, teremos alcançado mais de 500 milhões de doses para vacinar toda a população", disse. "Muito em breve, retomaremos nossa vida normal". No fim de sua fala, o presidente se solidarizou "com todos aqueles que tiveram perdas em suas famílias". "Que Deus conforte seus corações. Estamos fazendo e vamos fazer de 2021 o ano da vacinação dos brasileiros".
Para tentar acentuar essa mudança de comportamento, Bolsonaro fechou o pronunciamento de pouco mais de quatro minutos dizendo "Somos incansáveis na luta contra o coronavírus. Essa é a missão e vamos cumpri-la".
A mudança adotada por Bolsonaro é estratégica para reduzir os danos políticos a sua imagem. Ela acontece na véspera do seu encontro com representantes dos outros Poderes, que cobram uma ação mais organizada do governo no combate à pandemia. Na hora da fala do presidente, panelaços aconteceram em algumas das principais cidades do País. Os protestos ocorreram sob os gritos de "Fora Bolsonaro" e "Bolsonaro Genocida", e foram registrados em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Recife, Goiânia e Belo Horizonte, e outras cidades.
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Na decisão, decano do Supremo destaca que o governo federal não está isento de agir no combate à pandemia
Rayssa Motta
Rafael Moraes Moura / BRASÍLIA
O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), rejeitou ontem a ação apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro para derrubar decretos dos governos do Distrito Federal, da Bahia e do Rio Grande do Sul que impuseram "toque de recolher" à população, endurecendo as restrições à circulação de pessoas diante do agravamento da pandemia.
O processo foi movido pelo próprio Bolsonaro e não pela Advocacia Geral da União (AGU), a quem cabe representar judicialmente os interesses do Planalto perante o STF. Marco Aurélio considerou que caberia à AGU formalizar o pedido e rejeitou o recebimento da ação. "O chefe do Executivo personifica a União, atribuindo-se ao advogado-geral a representação judicial, a prática de atos em Juízo. Considerado o erro grosseiro, não cabe o saneamento processual", escreveu.
Na decisão de quatro páginas, o ministro ainda destacou que o governo federal não está isento de agir na pandemia. "Ante os ares democráticos vivenciados, impróprio, a todos os títulos, é a visão totalitária. Ao presidente da República cabe a liderança maior, a coordenação de esforços visando o bem-estar dos brasileiros", afirmou o ministro, em recado velado ao presidente Jair Bolsonaro, que tem procurado se isentar das responsabilidades na condução da crise.
Na avaliação de Bolsonaro, os decretos afrontam as garantias estabelecidas na Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica e "subtraíram parcela importante do direito fundamental das pessoas à locomoção, mesmo sem que houvessem sido exauridas outras alternativas menos gravosas de controle sanitário". O presidente também queria que o STF estabelecesse que medidas de suspensão de serviços não essenciais exigem a aprovação de leis locais, por parte do Poder Legislativo, não podendo ser determinadas unilateralmente por decretos de governadores.
"Tendo em vista o caráter geral e incondicionado dessas restrições à locomoção nos espaços públicos, elas podem ser enquadradas no conceito de 'toque de recolher', geralmente associado à proibição de que pessoas permaneçam na rua em um determinado horário", diz trecho da ação assinada pelo presidente. "Trata-se de medida que não conhece respaldo legal no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro".
Desde o início da pandemia, o Supremo tem sido acionado para arbitrar a briga travada pelos entes federativos sobre as estratégias para conter o surto do novo coronavírus. Em abril do ano passado, os ministros decidiram que governantes locais têm autonomia para adotar medidas de quarentena e isolamento social. Antes disso, em março, o próprio Marco Aurélio concluiu, em um processo movido pelo PDT, que Estados e municípios poderiam decidir sobre restrições de locomoção – o que atraiu a ação de Bolsonaro para sua relatoria.
Integrantes do governo admitiam reservadamente que o "timing" da ofensiva no Supremo não é favorável aos pedidos do presidente, em virtude do estágio atual da pandemia. A ação foi protocolada no mesmo dia em que foi anunciada a morte cerebral do senador Major Olimpio (PSL-SP) após complicações pela covid. Em transmissão ao vivo, na quinta-feira passada, Bolsonaro chamou governadores e prefeitos que decretam medidas restritivas de "projetos de ditadores."