O Estado de São Paulo, n. 46545, 25/03/2021. Política. p.A3

Bolsonaro mantém retórica negacionista em comitê

Marcelo de Moraes

Um ano depois do início da pandemia do novo coronavírus e pressionado pelas mais de 300 mil mortes pela doença, Jair Bolsonaro anunciou a criação de um comitê de crise para centralizar as ações contra o vírus. A medida foi tomada na reunião com os representantes dos Poderes, no Palácio da Alvorada, que teve também a presença de ministros e de sete governadores aliados. Apesar disso, o presidente voltou a insistir na defesa de práticas negacionistas, como o tratamento precoce – uso de medicamentos sem eficácia contra a covid-19 – e nas críticas ao lockdown.

“Tratamos também da possibilidade de tratamento precoce. Isso fica a cargo do ministro da Saúde (Marcelo Queiroga), que respeita o direito e o dever de o médico, ‘off label’ (fora da bula), tratar os infectados. É uma doença, como todos sabem, ainda desconhecida”, disse Bolsonaro. “Uma nova cepa, ou um novo vírus, apareceu e nós, obviamente, cada vez mais, nos preocupamos em dar o atendimento adequado a essas pessoas.”

A fala, porém, causou reação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Após o encontro, Pacheco fez questão de reforçar que o comitê de crise tomará decisões baseado na ciência. Mesmo sem se referir diretamente ao tratamento precoce, o recado foi endereçado a qualquer movimento negacionista que o presidente ou auxiliares tentem fazer dentro do comitê.

Instado a promover a reunião para tentar organizar uma espécie de “pacto nacional” contra o coronavírus, após ver sua popularidade cair, Bolsonaro acabou causando constrangimento ao insistir nessas posições. “Sou médico e não posso dizer que tratamento precoce faça parte do protocolo”, afirmou o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM).

Além de defender o tratamento precoce, o presidente criticou, mais uma vez, a prática do lockdown e repetiu que isso estava destruindo a economia, sem conter a pandemia. Caiado e Renan Filho (MDB), governador de Alagoas, argumentaram que essas restrições são importantes em algumas situações. Outra ponderação feita foi a de que isso ajudaria a diminuir o risco de contaminação nos transportes coletivos. Mesmo assim, Bolsonaro persistiu na sua queixa.

Apesar da reação enfática do presidente contra o lockdown, nenhuma posição sobre o assunto foi tomada, como destacou o governador do Rio, Cláudio Castro (PSC). “Mas todos concordaram que algum isolamento tem de ser feito”, disse. Aliado do presidente, Castro afirmou, porém, que essa questão está “desequilibrada e politizada”.

Um ministro presente à reunião disse ao Estadão que Bolsonaro precisa manter essas afirmações para sinalizar na direção dos seus seguidores mais ideológicos. Esse auxiliar observou, no entanto, que o comitê vai ignorar essas posições e decidir por ações respaldadas por médicos e especialistas no vírus.

 

Chanceler. Houve outro momento de tensão no encontro do Alvorada quando o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-al), fez uma cobrança mais incisiva em relação ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Lira lembrou da necessidade de a diplomacia brasileira atuar fortemente para garantir a obtenção de mais insumos e vacinas de outros países, como Estados Unidos, China e Índia, em vez de adotar comportamento ideológico contra nações que poderão ser parceiras nessas tratativas.

O chanceler tem sido um crítico público da China, o que virou um obstáculo a mais para o Brasil conseguir os insumos necessários para produzir vacinas. No Congresso, até partidos da base do governo acham que Araújo já deveria ter sido “rifado”. Mas o presidente não pretende entregar a cabeça do auxiliar, ainda mais depois de ter cedido ao demitir Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde, substituindo o general pelo médico Marcelo Queiroga.

Na conversa, Lira também cobrou ações concretas do governo para garantir mais vacinas e acelerar o processo de imunização no País. O deputado afirmou que a Câmara votará projeto que incentiva a iniciativa privada a bancar leitos de UTI para a rede pública em troca de abater a despesa em seus impostos.

 

‘Chapa-branca’. Depois da reunião, alguns ministros avaliaram que o comitê de crise pode ter sucesso na tarefa de organizar uma estratégia nacional para o combate ao coronavírus. Admitiram, porém, que o perfil chapabranca do encontro, sem a presença de atores importantes, como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), ou de algum representante dos prefeitos, reduz bastante a mensagem de busca de um “pacto nacional”.

Bolsonaro usou o encontro para também defender que não haja “politização” nesse debate. “Sem que haja qualquer conflito, sem que haja politização, creio que seja esse o caminho para o Brasil sair dessa situação bastante complicada que se encontra”, afirmou o presidente.

O pedido contra a politização não foi feito à toa. Bolsonaro vem acumulando desgaste político e caindo nas pesquisas por causa da falta de ações eficientes no combate à pandemia. Ao fazer um apelo para não haver politização, ele deseja que o foco das críticas seja desviado do Palácio do Planalto. No pronunciamento em rede nacional de rádio e TV, no dia anterior, ele já tinha falado sobre isso. E antes pediu que se destruísse o vírus, “e não o presidente”.

Ao relatar aos colegas a reunião com Bolsonaro e integrantes dos outros Poderes, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, acertou com eles que indicará um integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para compor o comitê responsável por coordenar ações contra a covid-19.

Segundo Fux, durante o encontro houve queixas de liminares que obrigam governadores e prefeitos a adotar medidas para enfrentar a pandemia sem que se leve em conta a capacidade dos Estados. “Nesse ponto, destaquei que é assegurado aos magistrados a autonomia e independência, mas entendo que pode haver uma sensibilização maior, por parte dos juízes, sobre a consequência dessas liminares”, afirmou o presidente do Supremo. / COLABORARAM EMILLY BEHNKE, CAMILA TURTELLI, DANIEL WETERMAN e RAFAEL MORAES MOURA

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Frente de prefeitos fala em 'federalismo de conveniência'

 

 

 

Tulio Kruse

 

A ausência de representantes dos municípios na reunião de ontem que definiu a criação de um comitê nacional para coordenar o enfrentamento da pandemia do coronavírus foi motivo de críticas das duas principais entidades que representam prefeitos no País. O anúncio ocorreu após um encontro do presidente Jair Bolsonaro com os chefes dos poderes Legislativo e Judiciário, alguns governadores e ministros.

O motivo do desconforto, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), é que as prefeituras são responsáveis pela aplicação das vacinas contra a covid-19 e por parte do atendimento básico de saúde aos infectados pelo novo coronavírus. Na véspera da reunião, a CNM havia publicado uma carta aberta na qual conclamou Bolsonaro a se empenhar em uma campanha de comunicação a favor da vacinação, do distanciamento social e do uso de máscaras e do álcool em gel.

Segundo o porta-voz da CNM, Eduardo Stranz, o anúncio do comitê foi recebido com cautela, pois ainda não se sabe se será, de fato, eficaz. "Houve demora e, ao mesmo tempo, se perdeu a oportunidade de contar com mais um ente federado (na reunião), que é o principal desse trio entre União, Estados e municípios." Para Stranz, até agora houve apenas interlocução entre prefeitos e governos estaduais. O diálogo com o governo federal, afirmou, foi marcado por "uma disputa desnecessária que nos levou ao ponto que estamos agora, na fase mais aguda da pandemia".

A FNP divulgou nota em que classifica a ausência de prefeitos no debate como "federalismo de conveniência" e critica o pronunciamento de Bolsonaro em cadeia de rádio e TV, anteontem, apontando omissões do presidente em temas como lockdown, isolamento social e escassez de medicamentos e de oxigênio para manter pacientes em unidades de terapia intensiva.