Título: Eutanásia ou eugenia?
Autor: Dr. João Claudio Lara Fernandes
Fonte: Jornal do Brasil, 31/03/2005, Internacional, p. A15

Professor de Filosofia Médica da Faculdade de Medicina Estácio de Sá

A eutanásia vem sendo debatida há mais de uma década e é praticada legal e rotineiramente em países da Europa como a Holanda e a Suíça. Apesar de não ser, portanto, um tema novo, o caso da americana Terri Schiavo vem causando polêmica e obtendo ampla difusão na mídia. Como explicar este fato? Que circunstâncias o trazem para a discussão ético-jurídica em toda a sociedade? Vários conceitos estão sobre a mesa: eutanásia passiva, ativa, orto-eutanásia, distanásia etc. Passando ao largo das definições, formais e frágeis, avaliamos o que ocorre na sociedade, particularmente no que tange à medicina, à doença, à vida e à morte.

Qualquer clínico se depara, eventualmente, com situações-limite no cuidado de um paciente. No caso de pessoas com doenças terminais, é comum chegar o momento em que insistir em procedimentos heróicos e invasivos claramente só fará aumentar e prolongar o sofrimento do doente.

Neste momento, nos dirigimos a melhorar a qualidade de morte daquela pessoa, por meio de procedimentos como analgesia, tranqüilizantes, entre outros. Isto deve ocorrer, claro, em concordância com o paciente e a família. Mais freqüente, ainda, é a situação em que o paciente decide parar de tomar os remédios e assume as conseqüências do ato.

Considero este um direito fundamental e, nestes casos, caberá ao médico apenas dar as informações necessárias a uma decisão consciente. Situações assim ocorrem rotineiramente não só com pacientes terminais, mas com dezenas de patologias como o diabetes, hipertensão arterial, cirrose, enfisema pulmonar etc. Nas quais o médico não tem poder sobre o tratamento efetivo de cada um, isto sem considerar os casos de quimioterapia ou radioterapia que o paciente se recusa a aceitar.

É preciso reconhecer, aqui, o direito ao livre-arbítrio que nos leva a eleger o nível de risco e a qualidade de vida que queremos. Qualquer pessoa, em certos momentos da vida pessoal ou familiar, convive com estas questões desde que a medicina moderna se constituiu.

Muito diferente é a situação de Terri. Ela tem quadro de paralisia cerebral, que impede formas habituais de interação social e autonomia, mas não impede que existam outros níveis, ainda que passivos, de interação, pela visita de profissionais e familiares, do lugar que passa a ocupar, neste estado, em seu ambiente de sociabilidade.

Existem milhares de crianças e adultos portadores de paralisia cerebral, e centros especializados no tratamento e busca de reabilitação destes doentes. Eles estão vivos, dentro de seus limites e possibilidades. Lembro-me de uma mãe cujo filho, aos sete anos, contraiu meningite e teve como seqüela a paralisia cerebral. Eu o acompanho há 15 anos e sempre me comovo com o nível de dedicação e afeto da mãe, que não mede esforços (físicos, inclusive) para cuidar dele.

Isto para não falarmos das milhares de crianças portadoras de síndromes genéticas ou doenças congênitas incuráveis cujas mães se desvelam e encontram, no trato de seus filhos, uma razão a mais para viver e amar.

Se seguirmos a mesma linha de raciocínio dos juízes americanos, não haveria motivo para manter a vida dos paralisados cerebrais, das crianças sindrômicas e das pessoas com uma diversidade de doenças incapacitantes, deixando a sociedade ¿livre¿ destes ¿anormais¿. Assim, a lógica jurídica adotada no caso de Terri se configura mais como uma discussão sobre eugenia do que sobre eutanásia.

Reconheço o direito das pessoas de morrer quando bem quiserem, com ou sem doenças, mas é inaceitável matar um ser humano porque ele não é uma ¿pessoa perfeita¿, sem direito de defesa, de escolha. Ainda por cima, para evitar a imagem de uma assassinato explícito via medicamentos, opta-se por matá-la por inanição, requinte de crueldade que causa vergonha.

Como ironia, sugiro que o governo brasileiro inclua Terri no programa Fome Zero. Reconheço o lobby das empresas de saúde para não terem que arcar com o prejuízo no tratamento destes doentes, mas qualquer empresa, principalmente aquelas, não pode se furtar ao compromisso com a vida e o conforto dos cidadãos e jamais, por motivos financeiros, atuar na promoção de assassinatos visando ao ¿mundo dos perfeitos¿. A sociedade civil tem sido sábia, até agora, para identificar estas ¿sutis¿ diferenças ideológicas, conceituais e éticas, e é isto que vem tornando este caso tão polêmico. Torço para que consigamos ainda a tempo.