Título: O Fundo e o Severino
Autor: Ricardo Antunes
Fonte: Jornal do Brasil, 31/03/2005, Outras Opiniões, p. A19

O Brasil encerrou seu ciclo de acordos com o FMI, iniciado no período FHC. O governo do PT aproveita, então, para buscar uma melhora de sua imagem, nesse momento em que se ampliam os índices de sua reprovação. É só isso que justifica o alardear de que o Brasil já ''anda com as próprias pernas'', conforme fala atribuída a Lula. Pernas que estão quebradas, mas isso ele não pode acrescentar, pois isso seria escancarar o fracasso de seu governo. Isso só valia quando o tucanato estava no poder.

Não é mais necessário o acordo com o FMI. Já houve uma completa e cabal assimilação do espírito do FMI na política econômica do trio Lula/Palocci/Meirelles. Muito mais do que o Fundo esperava. Tal foi o desempenho brasileiro que o falante Sr. Rato, diretor-gerente do FMI e ex-ministro do governo ultradireitista de Aznar, disse que foram ''impressionantes os êxitos econômicos [do Brasil]nos últimos dois anos''. (O Estado de S.Paulo, 26/03/2005, B3) FHC deve ter ficado com inveja. Fez tudo o que fez, e o Fundo não se cansa de elogiar o governo do PT.

Tornou-se, então, supérfluo e desnecessário um novo acordo. A política econômica vigente é a interiorização visceral do receituário e da (des)orientação do FMI. Se ele não mais impõe sua política para a Argentina, se o governo da Venezuela é outra história, aqui o Fundo calou mais fundo. Basta lembrar que uma das primeiras medidas tomadas pelo governo do PT foi aumentar, sem que o FMI exigisse, o superávit de nossas contas.

Apesar de tudo isso, o FMI alerta: o Brasil segue vulnerável frente às oscilações da economia global, especialmente por causa da nossa dívida pública, considerada alta (O Estado de S.Paulo, 26/03/2005, B3). Ou seja, ao contrário do que diz o governo Lula, a política econômica, depois de todo sacrifício feito, aumentando em dois milhões o número de desempregados, entre 2003/4, ampliando em quase 60% o contingente de trabalhadores na informalidade, levando aos céus as taxas de juros que consolidaram esse país como o paraíso dos bancos, ainda assim o Brasil segue vulnerável a mudanças internacionais. A aparência é a da recuperação da autonomia; a essência é a de um país mais servil e dependente do que ontem.

Se o governo Lula quisesse realizar uma mudança de fundo - aqui sem trocadilho - teria que seguir um outro caminho, realizando mudança completa de rota. Deveria ter iniciado a travagem do brutal processo de concentração de capital e financeirização da economia, além de obstar a informalidade e a precarização do trabalho. Há dois anos, com 52 milhões de votos, isso teria sido possível. Hoje, ao contrário, o governo tornou-se responsável por um pragmatismo contingente, desfigurado e dócil. E, ainda por cima, deslumbrado.

Pode-se então compreender a erosão da taxa de aprovação, bem como a perda de confiança no governo Lula, na recente pesquisa CNI/Ibope, que contabiliza quatro pontos percentuais a menos do que na pesquisa anterior (Jornal do Brasil, 23/03/2005, A2). Parece que se reduz a paciência popular e que está findando o período de esperas. Algo similar ocorreu com FHC.

Além do fracasso social de sua política econômica, é hoje limpidamente visível que a política do governo Lula só vem colhendo atropelos, que ajudam a jogar mais para baixo sua popularidade. Inicialmente, na eleição para a presidência da Câmara, levou uma surra do matreiro Severino, que tem a aparência do simplório e do jocoso mas está mesmo é de olho no Planalto.

A reforma ministerial abortada é outra mostra da erosão do governo. Depois de semanas fritando ministros e inventando outros, o mesmo Severino acabou estancando todo o arranjo feioso que tinha sido feito pelo Planalto, onde até o clã dos Sarney seria contemplado no vale-tudo do governo. Aparentemente, Lula teria saído vitorioso, mas de fato continua prisioneiro do centrão e da direita.

Se já não bastasse, Lula encontra no PSDB (Alckmin/Serra) oposição eleitoral forte, que pode avantajar-se aliando-se a Cesar Maia, do PFL. Seria a volta do esquema que deu sustentação a FHC, dobrada que pode dificultar o sonho da reeleição de Lula. Só falta mesmo o Severino e seu lumpemparlamentariado lançar seu nome no tabuleiro dos candidatos para aumentar o desassossego geral.

Talvez caiba à brava senadora Heloísa Helena, que atinge 4% das intenções de voto sem nunca ter sido candidata, a se credenciar para mostrar que não morreu a alternativa de esquerda no Brasil. Ou, melhor ainda, que é preciso ajudá-la a renascer.