Título: Um homem cordial
Autor: Gilson Caroni Filho*
Fonte: Jornal do Brasil, 31/03/2005, Outras Opiniões, p. A19
O que mais espanta é o próprio espanto. Passados quase dois meses de sua eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti continua no centro das atenções de acadêmicos, articulistas e comentaristas políticos. Quase todos não param de brandir arrazoados republicanos contra palavras e atos daquele que seria o arquétipo do atraso e reacionarismo. Tal como a célebre obra-prima de Pirandello, o deputado pernambucano continua à procura de um autor que lhe dê sentido.
Um funcionalismo apressado tomou lugar da análise lúcida. Talvez por termos, no plano teórico, nos exilado da história que desafia ou, por sentirmos um certo desconforto quando constatamos que tipos ideais não existem na realidade concreta, o reducionismo nos conforta e absolve. Sobram petições de princípios e expressões de desapontamento. Ambos perpassados por um misto de má-fé, ingenuidade e melancolia ibérica. O que é preciso deixar claro é que na vida pública brasileira Severino não é um desvio, mas a regra. Não é retrocesso, mas a personificação nua e crua do fazer político num simulacro de república. No campo do conservadorismo, trata-se da expressão mais autêntica do patrimonialismo, da indistinção entre público e privado, do fisiologismo que marca as relações de dominação e formata o aparato estatal e instituições representativas.
Ao demonizá-lo como representante da direita atrasada e ícone do baixo-clero, seus detratores lançam involuntariamente duas questões muito significativas: O que seria a direita moderna e qual seria o alto-clero que a representa ? O tucanato que atualizou o cartorialismo e o mandonismo de forma inequívoca nos últimos oito anos? A elite que sucateou o Estado, financeirizou a economia e produziu um nível de endividamento do setor público equivalente a 61,9% do PIB?
Ou será que a elite reside no PFL? O que distingue qualitativamente notáveis cardeais pefelistas de Severino Cavalcanti ? A maior capacidade de loteamento eleitoral de seus estados? A capilaridade mais ampla do clientelismo e o poder coercitivo de que dispõem? Ou, como conseqüência de tudo isso, um esquema de troca de favores com setores da imprensa nativa?
O que causa espécie no ultimato dado ao presidente Lula? A ameaça de rompimento com o governo em caso de não nomeação de aliado o diferencia das ameaças que o condestável ACM fazia a FHC? Ademais, quem se dispõe a praticar o realismo político não pode se furtar ao convívio de constrangimentos. Ou monta alianças estabelecendo como eixo um projeto de país ou forma uma coalizão em que a permanência à frente do Estado se superpõe à identidade pretérita.
Acaso a nomeação do filho para a Superintendência Federal de Agricultura em Pernambuco e outros parentes para cargos na Câmara sob a justificativa de que todos têm nível superior configura uma patologia nova na esfera pública brasileira ? Nepotismo e bacharelismo não são o que Dürkheim classificaria como fato social consolidado, nossa maneira de ser?
Severino enraivece porque sua ingenuidade torna mais visível a natureza dos pactos que estão sendo urdidos no plano institucional. A ''novidade'' que representa foi definida por Sérgio Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil, há quase 70 anos: ''Para o funcionário patrimonial a gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular: as funções, os empregos e benefícios que dele aufere relacionam-se a direitos pessoais e não a interesses objetivos (...) para se assegurarem garantias jurídicas ao cidadão''. É do homem cordial que se está falando. Do seu apreço pelos íntimos, de seu horror pela impessoalidade igualitária. É a direita brasileira em estado bruto. Ora atende por Jorge, ora por Virgilio, ou Fernando. No momento se chama Severino. Apenas isso, nada mais.
*Gilson Caroni Filho é professor-titular de Sociologia da Facha