Título: Sem voto não há mandato
Autor: Fabio de Sousa Coutinho
Fonte: Jornal do Brasil, 31/03/2005, Outras Opiniões, p. A19

Ao se aproximar a reforma política que o Brasil espera há tanto tempo, deve merecer reflexão a norma vigente que, na Constituição Federal (o parágrafo 3º de seu Art. 46), agasalha a excrescência que é a figura do representante (senador) sem voto.

É do conhecimento generalizado que a Constituição confere aos senadores mandato de oito anos, sendo eles eleitos juntamente com dois suplentes. Em qualquer hipótese de afastamento do titular, e a qualquer momento, no curso dos oito anos, determina também nossa Carta Magna que assumem, nesta ordem, o 1º ou o 2º suplente. Trata-se, sem a menor ambigüidade, de dispositivo que se enquadra, sob medida, na clássica definição de normas constitucionais inconstitucionais, inicialmente desenvolvida pelo célebre jurista Otto Bachof, professor da Universidade de Tübingen.

Sem terem sido votados, sem representarem ninguém, sem legitimação de quem quer que seja, muitas pessoas (financiadores de campanha, parentes, amigos) chegam a exercer longos mandatos senatoriais, afrontando a vontade popular e contribuindo para desmoralizar a essência democrática de nossa lei fundamental.

Os exemplos são vários, todos recentes e indistintamente decepcionantes. Pouquíssimos eleitores amazonenses sabiam, em 1986, que, ao eleger o saudoso Fabio Lucena para um mandato de 8 anos no Senado, estavam criando expectativa de direito para o Sr. Áureo Mello. Pois bem: deu-se a tragédia conhecida (a morte precoce do Senador eleito, diplomado e empossado) e a conseqüência é que o Sr. Mello, sem um único voto, foi aquinhoado com impressionantes seis anos de senatória.

Tristemente, a história veio a repetir-se, penalizando o mesmo povo amazonense que, em 1990, elegeu o Sr. Amazonino Mendes para mandato de 8 anos. Eleito prefeito de Manaus no pleito de 3 de outubro de 1992, o Sr. Amazonino deixou, em 1º de janeiro de 1993, ao empossar-se na Prefeitura, 6 anos de investidura senatorial para o empresário Gilberto Miranda, de credenciais no mínimo questionáveis para o exercício de funções da relevância das que são inerentes aos membros da chamada Câmara Alta e virtualmente desconhecido do eleitorado que consagrara nas urnas tão somente o Senador que acabou renunciando.

Mas, os exemplos não são, como pode parecer até aqui, monopólio daquele que é, em termos territoriais, o maior estado da Federação brasileira. Também de Pernambuco, pelas artes da suplência transformada em titularidade por morte prematura do senador Antônio Farias, chegou ao Senado, ainda durante os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, o Sr. Nei Maranhão, que, igualmente, sem ter sido votado pelo eleitorado pernambucano, ascendeu a um mandato senatorial de praticamente 6 anos, ou seja, ¾ do originalmente conquistado nas urnas pelo falecido titular.

Mais recentemente, em 2000, com a cassação do Sr. Luiz Estevão por seus próprios pares, o empresário brasiliense Walmir Amaral foi presenteado com quase sete anos no Senado, em aberração que escancarou a ilegitimidade e a ausência de representatividade no exercício de mandato parlamentar.

Não há que argumentar que, na Câmara dos Deputados, vários suplentes assumem mandatos. Ali, o suplente que chega ao exercício do mandato deve, necessariamente, ter disputado uma eleição proporcional e recebido votos populares que o credenciam a, eventualmente, chegar à casa que simboliza a soberania do povo.

No caso do Senado, câmara de representação federativa, em que a eleição é majoritária, não se justifica o instituto da suplência da forma como hoje vigora entre nós, a rigor uma usurpação da vontade popular, mormente quando se leva em conta que a função pode ser assumida pelo suplente, em tese, desde o primeiro dia do mandato de oito anos daquele candidato que foi, de modo personalíssimo, eleito senador pelos eleitores de seu Estado ou do Distrito Federal.

Nos Estados Unidos, mesmo na hipótese de nomeação do Senador para alto cargo em comissão (como aconteceu com o Secretário do Tesouro escolhido pelo presidente Clinton, o político texano Lloyd Bentsen), convocam-se eleições para a escolha do novo representante do Estado no Senado. Entre nós, talvez não devêssemos chegar a tanto, principalmente se considerarmos a instabilidade de nossas composições ministeriais. Mas, em casos de morte, cassação, renúncia ou eleição para outro cargo majoritário (presidente da República, Governador ou Prefeito), parece evidente que, pelo menos enquanto restar por cumprir, por exemplo, qualquer período acima de ¼ do mandato de 8 anos, a Constituição deveria determinar a realização de eleições no prazo de 60 a 90 dias contados do evento que marcar o fim do mandato do Senador originalmente eleito. Restando menos de dois anos de mandato (ou seja, menos de ¼), aí, sim, poderia assumir um suplente que, teoricamente, cumpriria o mandato até o fim.

A matéria, obviamente, não se esgota com facilidade, mas é também certo que alguma coisa precisa ser feita, na reforma política que parece avizinhar-se, a fim de evitar que a tribuna gloriosa e honrada do Senado Federal seja ocupada por pessoas sem um voto sequer, sem um mínimo de representatividade e, last but not least, sem nenhuma legitimidade.