O Estado de São Paulo, n. 46547, 27/03/2021. Internacional. p.A14

Cúpula de 30 anos do Mercosul acaba em bate-boca

 

 


Rusga entre argentino Alberto Fernández e uruguaio Lacalle Pou nem chegou a ser presenciada por Bolsonaro, que saiu antes do fim

Emilly Behnke / BRASÍLIA 

O encontro da cúpula do Mercosul, em comemoração aos 30 anos do bloco, foi um reflexo do desalinhamento entre os países-membros. Boa parte da discussão nem sequer foi acompanhada pelo presidente Jair Bolsonaro, que deixou a videoconferência após sua participação. O principal bate-boca aconteceu entre os presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e da Argentina, Alberto Fernández, que ocupa a presidência rotativa do bloco.

Lacalle Pou fez um discurso duro no qual defendeu a flexibilização do bloco e disse que o Mercosul não deveria ser um peso para seus membros. Ele afirmou que o bloco não deve e não pode ser um "lastro" para os países que o integram.

Ao final da videoconferência, Fernández rebateu. "Terminemos com essas ideias, em um momento tão difícil em que a unidade tanto nos importa. Não queremos ser uma carga para ninguém. Se somos uma carga, que nos deixem", disse. O presidente argentino disse ainda que "se a carga é muito pesada, o mais fácil seria descer do barco".

Na reunião, Lacalle Pou também cobrou maior atuação do bloco e sua flexibilização. "Vamos propor formalmente discutir a flexibilização. O Uruguai precisa tecnicamente, e sobretudo politicamente, que o Mercosul tome uma decisão a respeito", disse o presidente do Uruguai.

As divergências entre os parceiros do Mercosul nunca foram tão evidentes numa cúpula. Há muito tempo, o Uruguai defende a flexibilização do bloco para expandir as negociações comerciais com outros países. O governo brasileiro, agora com Bolsonaro, apoia o pedido do Uruguai, mas Argentina e Paraguai sempre foram mais reticentes.

Ontem, Bolsonaro foi o segundo a falar na videoconferência e pediu maior integração regional e defendeu que sejam "redobrados os esforços nas negociações externas". O presidente brasileiros também ressaltou que eventuais diferenças políticas dentro do bloco não podem influenciar a integração e desenvolvimento econômico dos países.

"Para levar adiante a agenda de modernização do Mercosul, é preciso compromisso e espírito de cooperação entre os membros. Diferenças de perspectivas que existam entre nós, de natureza política ou econômica, não devem afetar o andamento do projeto de integração, desde que respeitados os princípios que balizam o bloco", afirmou.

Vacinas. Já o Paraguai, que vive uma crise política em razão da insatisfação da população com a resposta à pandemia dada pelo presidente, Mario Abdo Benítez, preferiu usar seu tempo pedindo cooperação para ter acesso a vacinas contra o novo coronavírus.

Outra questão que preocupa o governo paraguaio é negociar de maneira conjunta acordos externos, já que o país sozinho dificilmente conseguiria se inserir no mercado global. "Não podemos permitir que as ideologias contaminem o processo, que nos dividam, temos de ser exemplo e deixar um legado de entendimento e tolerância", disse Benítez.

No encontro de ontem, Fernández propôs a criação de observatórios para tratar da qualidade da democracia, da violência de gênero e do meio ambiente. O tema do meio ambiente, em especial, é uma cobrança internacional direcionada ao Brasil, mas não foi mencionada por Bolsonaro em sua fala.

Além dos presidentes dos países-membros (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) a videoconferência também teve a participação dos chefes de Estado do Chile, Sebastián Piñera, e da Bolívia, Luis Arce, países associados que podem ser incorporados futuramente como membros plenos do Mercosul.

Bola dividida

"O que não pode ser o Mercosul é um lastro. Não estamos dispostos a torná-lo um espartilho no qual nosso país não possa se mover"

Luis Lacalle Pou

PRESIDENTE DO URUGUAI

"Não queremos ser uma carga para ninguém. Se a carga é muito pesada, o mais fácil seria descer do barco"

Alberto Fernández

PRESIDENTE DA ARGENTINA

CRONOLOGIA

Integração feita pela metade

1979

Acordo Tripartite

Brasil, Argentina e Paraguai põem fim à maior crise regional do pós-guerra. Assinatura do pacto marca início da cooperação entre brasileiros e argentinos, regulariza a exploração dos recursos hídricos do Rio Paraná e o funcionamento das usinas de Itaipu e Yacyretá.

 

1985

Ata de Iguaçu

Tratado assinado pelos presidentes Raúl Alfonsín, da Argentina, e José Sarney, do Brasil, lança a ideia da integração econômica e política da região.

 

1991

Tratado de Assunção

Fernando Collor (Brasil, Carlos Menem (Argentina), Andrés Rodríguez (Paraguai) e Lacalle Herrera (Uruguai) criam o Mercosul. Os objetivos do bloco são promover a abertura econômica, intensificar o comércio com o mundo, atrair investimentos estrangeiros e promover inserção competitiva dos quatro países na economia globalizada.

 

1994

Protocolo de Ouro Preto

Cria a estrutura institucional: um órgão político (Conselho do Mercado Comum), um Legislativo (Parlamento do Mercosul) e órgãos técnicos (Comissão de Comércio).

 

1998

Protocolo de Ushuaia

Tenta resolver crise criada após uma tentativa de golpe do general Lino Oviedo contra o presidente paraguaio, Juan Carlos Wasmosy. O Protocolo de Ushuaia introduz a cláusula democrática, ausente do Tratado de Assunção.

 

2000-2003

Crise na Argentina

O Mercosul enfrenta um longo período de crise em razão dos problemas políticos e econômicos da Argentina. Com as mãos atadas em razão dos anos de dolarização, o governo argentino decreta uma série de medidas protecionistas nos setores têxteis, de calçados, automóveis e linha branca, o que provoca atritos com o Brasil. A situação só começa a se estabilizar com a chegada de Néstor Kirchner (foto) à Casa Rosada.

 

2002

Protocolo de Olivosia o Tribunal Permanente de Revisão, segunda instância da resolução de controvérsias. No entanto, o órgão, que começou a funcionar em 2004, nunca cumpriu seu papel, já que os países-membros muitas vezes preferiam resolver suas divergência na Organização Mundial do Comércio (OMC), que sempre teve mais prestígio.

 

2007

Tratado com Israel

Uma das maiores críticas ao bloco sempre foi sua incapacidade de produzir acordos comerciais abrangentes. Mas, após dois anos de negociação com Israel, o Mercosul assinou seu primeiro tratado de livre-comércio.

2019

Tratado com UE

Negociado desde 1999, tratado de livre-comércio com a União Europeia é finalmente assinado – mas não sai do papel. Acordo esbarra na resistência de governos, Parlamentos e ativistas europeus insatisfeitos com a política ambiental de Jair Bolsonaro (foto).