Título: O confisco do direito à vida
Autor: Augusto Nunes
Fonte: Jornal do Brasil, 05/04/2005, País, p. A2

O presidente Lula da Silva dispensou-se de comparecer ao enterro dos 30 brasileiros, sete deles com menos de 18 anos, chacinados na Baixada Fluminense. Dois registravam antecedentes criminais. Os outros eram apenas trabalhadores pobres. Nenhum deles mereceram do destino a clemência reservada ao pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva. Sobreviviam em grotões de Nova Iguaçu e Queimados, paragens freqüentadas também por traficantes de drogas e policiais decididos a transformá-los em alvos preferenciais de expedições punitivas. Escolhidas a esmo, as vítimas sucumbiram à fuzilaria supostamente promovida por um grupo de extermínio da PM. Em qualquer país civilizado, as famílias dos executados teriam merecido ao menos o abraço solidário do chefe de governo. Mas a agenda de Lula já recomendava absoluta prioridade para uma viagem bem mais relevante: deveria abrilhantar em Roma o adeus ao papa João Paulo II. A cerimônia exigia a presença do nº 1 da maior nação católica do mundo. Deus, que é brasileiro, não aceitaria tamanha desfeita ao grande morto.

Para representá-lo no enterro de segunda classe, Lula enviou ao Rio o secretário dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda. O emissário chegou atrasado. Forasteiros têm dificuldade para circular nesses emaranhados de barracos e casebres que lembram favelas sem vista para o mar. Nilmário deve ter-se desgarrado em alguma viela.

O medo ainda subjuga a esperança nas terras esquecidas

Melhor assim. Liberado da contemplação de cadáveres insepultos, pronunciou sem gaguejar o palavrório de praxe. Prometeu punições exemplares, garantiu o apoio do Planalto às ações do governo estadual e voltou para o mundo maravilhoso de Brasília. Por esperteza ou caridade, o guardião dos Direitos Humanos poupou a pequena platéia de ouvi-lo recitar a versalhada fantasiosa de Duda Mendonça. Não ousou repetir, por exemplo, que no Brasil de Lula a esperança venceu o medo.

Há décadas, o medo vem colecionando avanços em paragens historicamente ignoradas pelo aparelho do Estado. Os viventes desses pátios de horrores, tão longe e tão perto de nós, nunca tiveramtranqüilidade para só lutar pelo futuro. Primeiro, sofreram o jugo dos grandes bicheiros, que se beneficiaram da omissão (ou da cumplicidade ativa) dos chefes políticos, parceiros no crime e no lucro. Depois vieram os traficantes de armas e drogas, minoritários mas suficientemente brutais para reduzir à vassalagem a população honesta. E jamais contaram com a proteção do aparato de segurança prometido por todos os candidatos e imediatamente arquivado depois das eleições.

Há evidências de que a chacina promovida na semana passada configura uma medonha retaliação de integrantes da Polícia Militar inconformados com punições aplicadas pelos comandantes a bandidos fardados. Se foi assim, resta o consolo de que efetivamente começou a indispensável faxina nos quadros de uma instituição devastada, como tantas outras, por tumores que recomendam imediata remoção.

É um bom combate, mas assinala o prólogo de uma guerra bem mais abrangente. O esforço repressivo, destinado a neutralizar a bandidagem, deve ser conjugado com o aperfeiçoamento dos sistemas de inteligência, o saneamento dos aparelhos policiais, a disseminação de programas sociais que mereçam tal nome, a criação de empregos no país esquecido, a efetiva aliança entre os governos. Sobretudo, o fim da impunidade. Muitos matadores são presos. Poucos ficam na cadeia.

No discurso da vitória, Lula jurou que só dormiria em paz quando todos os brasileiros conseguissem alimentar- se três vezes por dia. É preciso primeiro garantir- lhes o direito à vida, por mais penosa que seja.