Título: Amigo externo, inimigo interno
Autor: Milton Temer
Fonte: Jornal do Brasil, 05/04/2005, Outras Opiniões, p. A9

Ninguém me contou; eu vi em transmissão ao vivo, pela televisão, e não consegui ainda compreender o critério de edição dos jornais diários no dia seguinte. Numa cerimônia festiva do Banco Central, transmitida ao vivo pela televisão, semana passada, o ministro Palocci reafirmava a necessidade urgente de autonomia para o Banco Central. Até aí nada demais, porque é mais que sabido tal iniciativa do governo Lula só depender de ocasião, e não de opinião. O BC já exerce autonomia prática em relação às instituições públicas. Não exerce é em relação ao FMI e aos interesses do sistema financeiro privado.

Mas por que reproduzir este café requentado, em manchetes, e ocultar o fato novo? Por que não relatar o elogio caudaloso, do atual ministro, à administração Armínio Fraga/ Pedro Malan pela ''reforma mais avançada'' - que não consegui captar qual era - até então empreendida pelo Banco Central?

Tal referência é de extrema importância. Fornece uma das mais escandalosas evidências de que a reversão doutrinária do governo Lula, em direção ao escrachado neoliberalismo, não é uma eventual concessão de percurso, e sim opção doutrinária deliberada e irreversível. O que deve se confirmar no próximo Encontro nacional do PT, para o qual já se anuncia a introdução do ajuste fiscal e da manutenção de superávit como valores programáticos permanentes. Epílogo de um triste processo que mostra a social-democracia petista concluindo, em poucos anos, o que a social-democracia européia levou décadas para explicitar.

Aliás, a semana primou por episódios polêmicos. Para além da revelação do amor secreto por práticas passadas, outro movimento marcante foi o da substituição da MP 232, para tentar pôr fim a uma novela cujo desdobramento se tornava imprevisível.

Por que nasceu tal MP? Nasceu para atender a promessa de campanha com respeito à correção da tabela de Imposto de Renda da pessoa física. Mas, no contraponto, ela trouxe uma arapuca compensatória. Estabelecia parâmetros mais severos na taxação de prestadores de serviço, com o que aplicava uma paulada em segmentos de profissionais autônomos com peso na base de apoio social ao governo.

Vamos reconhecer não ser totalmente injusta uma modificação desses índices tributários. Mas sua aplicação não é prioritária. Serve apenas para demonstrar a quem a alta burocracia da Receita presta reverência. A injustiça maior, a mais violenta - a que isenta de tributos a movimentação financeira especulativa -, esta ninguém cogitou tocar. O que reafirma não existir possibilidade de justa reforma tributária no atual governo.

Mais grave, no entanto, foi a outra iniciativa drástica com que o Planalto coroou a semana. Gerou, por decreto presidencial, a BIL-GLO, Brigada de Infantaria Leve - Garantia da Lei e da Ordem. Segundo o comando do Exército, trata-se de uma unidade destinada a conter rebeliões, desocupar terras e coibir manifestações populares, ou distúrbios civis. Mas espera aí? Quem cogita de rebelião? Manifestação popular, em governo democrático, é para ser coibida ou para ser protegida? E mais; vai ser criada uma unidade especializada do Exército para, por exemplo, garantir que só haja manifestações públicas favoráveis ao governo? E para calar a oposição?

Resta saber como vão se comportar as bancadas petistas da Câmara e do Senado. Porque, justiça se faça, desta vez o presidente do PT, José Genoino, não tentou tirar coelho de cartola para justificar o governo. Marcou a posição do partido contrária à utilização do Exército em tais investidas. O que se compreende. Pois pior que continuísmo de modelo neoliberal, trata-se de um brutal retrocesso democrático. Aí, não há meio termo. Ou somos transportados à República Velha, onde questão social era caso de polícia; ou, mais grave, recaímos no abjeto conceito de ''inimigo interno'', que caracterizou a doutrina de segurança nacional da ditadura resultante do golpe de 64.

Qual dos dois cenários foi o inspirador do presidente da República, ex-torneiro mecânico, e dirigente de greves antológicas do ABC? Qualquer que seja, não o deixa com imagem limpa na história.