Correio Braziliense, n. 20595, 12/10/2019. Política, p. 12

De volta às origens

Rodrigo Craveiro


Em sua 100ª edição, uma das honrarias mais importantes do planeta voltou às origens pensadas por seu criador, o inventor sueco Alfred Nobel (1833-1896). O Comitê Norueguês decidiu entregar o Nobel da Paz ao primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed Ali, “por seus esforços em alcançar a paz e a cooperação internacional, e em particular por sua iniciativa decisiva em resolver o conflito fronteiriço com a vizinha Eritreia”. Aos 43 anos, o premiê se tornou o único etíope e o sexto africano contemplado com a honraria, entregue a 108 indivíduos e a 27 organizações desde 1901. Na última década, apenas o então presidente colombiano, Juan Manuel Santos, tinha sido premiado em 2016 por uma ação decisiva para encerrar um conflito. “Eu fiquei tão humilde e emocionado ao ouvir a notícia. É um prêmio dado à África e à Etiópia. Imagino que outros líderes na África pensem que é possível trabalhar nos processos de construção da paz em nosso continente”, afirmou Abiy, ao receber o telefonema de Olav Njostad, secretário do Comitê Norueguês do Nobel. “Estou muito feliz e muito honrado.”

Ao anunciar o nome do premiado, às 11h de ontem (6h em Brasília),  Berit Reiss-Andersen, presidente do Comitê, explicou que o prêmio é “um reconhecimento às partes que trabalham pela paz e pela reconciliação, no leste e no nordeste da África”. De acordo com ela, quando assumiu a chefia de governo, em abril de 2018,  Abiy deixou claro que pretendia retomar as negociações de paz com a Eritreia. “Ele rapidamente trabalhou por um acordo de princípios para pôr fim ao longo impasse entre os dois países. Tais princípios fazem parte de declarações assinadas pelo primeiro-ministro Abiy e pelo presidente da Eritreia, Issaias Afworki, em julho e em setembro”, afirmou. “A paz não surge de uma parte sozinha. Quando o primeiro-ministro Abiy estendeu a mão e o presidente Afworki a apertou, ajudou a formalizar o processo de paz entre dois países”, acrescentou, ao sinalizar a esperança de mudanças positivas para os povos da Etiópia e da Eritreia.

Exemplo maravilhoso
As duas décadas de conflitos entre os vizinhos deixaram dezenas de milhares de mortos. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, saudou a escolha do Comitê Norueguês do Nobel. “A visão de Abiy ajudou a Etiópia e a Eritreia a alcançarem uma reaproximação histórica, e sua liderança forneceu um exemplo maravilhoso para outras pessoas na África e além dela”,  escreveu no Twitter. Mais tarde, por meio de um comunicado, Guterres frisou que o acordo de paz “abriu novas oportunidades para a segurança e a estabilidade na região”.

O diplomata etíope Mohammed Ademo conheceu pessoalmente Abiy em julho de 2018, três meses depois de ele ascender ao cargo de premiê, durante uma visita do líder à diáspora em Washington. “O prêmio é um reconhecimento à coragem de Abiy, à ousada liderança e à disposição de correr riscos para colocar fim a duas décadas de guerra com a Eritreia. Ele introduziu na região um novo tipo de política baseado no perdão, na compaixão e na grande humildade”, contou ao Correio. “É um grande dia para a Etiópia, para o primeiro-ministro e para todos os africanos. Sem dúvida, seu reconhecimento encorajará e inspirará aqueles que lutam pela paz e pela cooperação em ambientes políticos profundamente polarizados.” Segundo Ademo, Abiy é altamente gentil, caloroso e extremamente humilde. “Além de ser uma pessoa acessível, é um pensador rápido e fácil de conversar.”

Yalew Abate Reta, embaixador extraordinário e plenipotenciário da Etiópia no Brasil (leia o Três perguntas para), lembrou à reportagem que Abiy escapou de um ataque a granada em 23 de junho de 2018, durante um comício para dezenas de milhares de pessoas, na Praça Meskel, na capital Addis Ababa. Na ocasião, duas pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridas. “A ação teria sido orquestrada por grupos que pretendiam dificultar as reformas econômicas e as mudanças positivas provocadas na Europa”, explicou.

Compromisso
Segundo o embaixador, as contribuições de Abiy à paz no Chifre da África são prova do compromisso duradouro da Etiópia com a estabilidade e a segurança em todo o continente. “O premiê normalizou as relações com a nação irmã Eritreia, depois de duas décadas de impasse, sem perder tempo. O tema foi abordado no primeiro discurso dele no Parlamento. Também desempenhou papel importante na iniciativa de paz com a União Africana para mediar o Conselho Militar Transitório e as Forças de Liberdade e de Mudança no Sudão, após a deposição do presidente Omar Hassan Al-Bashin”, disse. Para Reta, as ações de Abiy “são um claro testemunho de que a África é dotada de sabedoria e de capacidade para resolver os próprios problemas”.

Três perguntas para

Yalew Abate Reta, embaixador extraordinário e plenipotenciário da Etiópia no Brasil

Qual é o simbolismo do Nobel da Paz para o seu povo?
O Nobel da Paz é “um prêmio para a Etiópia e para o continente africano”, nas palavras do próprio primeiro-ministro. É um encorajamento a todos os comprometidos com a paz em todo o mundo.

O primeiro-ministro Abiy Ahmed está no poder há menos de dois anos. Como foi capaz de tantas façanhas em curto espaço de tempo?
O primeiro-ministro veio ao poder em um momento político crítico do país. Ele serviu na estrutura de governo em diferentes níveis, incluindo como ministro da Ciência e da Tecnologia, onde mostrou suas incríveis habilidades de liderança. Também conseguiu obter o apoio do povo da Etiópia, e visitou cada estado do país, imediatamente após tomar posse. Sua  forte crença no ‘Medemer’ (uma palavra em árabe para ‘vir juntos’) como base das reformas fez com que ele olhasse adiante. O apoio da comunidade internacional, especialmente dos povos e de governos de países africanos, como Eritreia, Sudão, Sudão do Sul, Djibuti e Somália, permitiram que as iniciativas pacíficas do primeiro-ministro Abiy se tornassem realidade.

Muitas pessoas entendem que o prêmio é um compromisso do premiê com a paz e a liberdade de expressão. Como o senhor vê isso?
A libertação de jornalistas e de presos políticos, a autorização para que partidos políticos banidos retornassem ao país, a alteração das infames leis antiterrorismo e de sociedade civil (CSO) estavam entre as façanhas do primeiro-ministro Abiy nos 100 primeiros dias de governo. O mundo tem sido testemunha até que ponto a Etiópia avançou desde então. O Nobel da Paz é um reconhecimento global por estamos no caminho certo e um apoio significativo para fazermos mais. (RC)

Personagem
da notícia

Da luta armada
à paz estável

Abiy Ahmed Ali nasceu a 15 de agosto de 1976 em  Beshasha, uma comunidade pobre do centro-oeste da Etiópia. Sua casa não tinha energia elétrica nem água corrente e ele dormia no chão. Filho de pai muçulmano e de mãe cristã, era obrigado a buscar água em um rio próximo e somente foi conhecer a eletricidade e o asfalto aos 10 anos. Na adolescência, se envolveu na luta armada para combater o regime do ditador Mengitsu Haile Mariam. Também exerceu a função de operador de rádio e aprendeu o idioma da região de Tigray, grupo étnico majoritário na luta armada e que formou o núcleo duro do regime depois da queda de Mengitsu, em 1991.

Foi então que começou a progredir na coalizão de governo, a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (EPRDF), primeiro na área de segurança e, depois, no setor político. Alçado à patente de tenente-coronel, em 2008 ajudou a fundar a Agência Nacional de Inteligência (Insa), a qual comandou por dois anos. Em 2010, incorporou-se à política, tornando-se deputado do partido Oromo, da coalizão governista. Cinco anos depois, assumiu o Ministério de Ciência e Tecnologia. No fim de 2015, um movimento de protesto contra o governo ganhou força entre as principais comunidades do país, os oromo, a qual pertence Abiy Ahmed, e os amhara.

Apesar da repressão violenta do movimento, as manifestações provocaram a queda do primeiro-ministro Hailemariam Desalegn, símbolo de uma coalizão incapaz de apresentar respostas às aspirações da juventude. A EPRDF designou Abiy Ahmed para solucionar a situação, e ele se tornou o primeiro oromo a assumir o posto de chefe de governo, em abril de 2018. Desde que passou a comandar o país com a segunda maior população da África, aos 43 anos, abalou as bases de um regime pesado após mais de 25 anos de exercício autoritário de poder e modificou a dinâmica da região do Chifre da África. Com seis meses de governo, Abiy Ahmed realizou uma série de medidas impressionantes: assinou um acordo de paz com a vizinha Eritreia, libertou milhares de dissidentes, pediu perdão pela brutalidade do Estado e recebeu de braços abertos os integrantes de grupos exilados chamados de “terroristas” pelos antecessores.