Correio Braziliense, n. 20591, 08/10/2019. Artigos, p. 11

Armas para quê?

Antônio Rangel Bandeira


Desde a Conferência da ONU sobre tráfico de armas em 2001, o mundo avançou muito no controle de armas. Só o Brasil está regredindo nessa política. Até mesmo países conhecidos como “paraísos das armas” se alinham a essa tendência. Na Suíça, 63,7% da população votaram em plebiscito por maiores restrições às armas. Sua fabricante de armas Ruag foi proibida pelo Parlamento de abrir fábrica no Brasil “para não botar em risco a reputação da Suíça”, diante da violência que suja a imagem do Brasil. A Nova Zelândia também tornou a lei de armas mais restritiva, depois do massacre em duas mesquitas no ano passado. Até o governo Trump, acossado por massacres sucessivos, promete rever a liberação da venda de armas para quem não comprove bons antecedentes criminais e saúde mental.

Trabalhei com um grupo de especialistas da ONU, dando treinamento para militares e policiais de 19 países, e comprovei a preocupação crescente com o controle de armas. Devemos aprender com a experiência de outros povos. Por exemplo, o Japão, que abandonou uma cultura militarista que tinha até a Segunda Guerra, investiu na cultura de paz, em educação, no bom treinamento da polícia, e tem uma das leis mais restritivas sobre uso de armas por civis. Resultado: em todo o ano de 2017, teve apenas três homicídios por arma de fogo, enquanto o Brasil amargou 47.500 homicídios naquele ano, 130 por dia!

Os países democráticos e desenvolvidos implementam políticas públicas baseados em conhecimento científico, em pesquisas rigorosas, e não em “achismo” como nós. Cresce com nosso governo o desprezo pela ciência, e políticas passam a ser norteadas por ideologia e crenças atrasadas. Como a de incentivar a autodefesa, para que o cidadão se defenda sozinho, em vez de se melhorar a polícia para que proteja todos os cidadãos com eficiência. Isso quando todo especialista sabe que a arma é boa para ataque, mas precária para autodefesa, porque quem assalta conta a seu favor com o determinante fator surpresa. Em 1995, o deputado Jair Bolsonaro foi assaltado, e levaram sua moto e a pistola Glock que portava. Ele admitiu na ocasião: “Mesmo armado, me senti indefeso”. Essa é a realidade do assalto, e não a fantasia do cinema. Pesquisas mostram que, de cada 10 pessoas que reagem com arma a um assalto armado, sete são baleadas. Os números falam por si. O resto é ilusão.

No Congresso, parlamentares que tiveram suas campanhas financiadas pela indústria de armas querem derrubar nossa lei de controle de armas. Lei admirada e copiada a nível internacional por ter evitado a morte de mais de 197 mil brasileiros, num período de 12 anos, segundo pesquisa do respeitado Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do governo. O chamado Estatuto do Desarmamento tem contido o aumento dos homicídios, que só não são mais baixos porque não foram feitas reformas na polícia, no sistema prisional, no Judiciário, nem se reprime com inteligência o narcotráfico e as milícias. Como a violência urbana é um fenômeno complexo, exige um somatório de medidas, não bastando o controle de armas. Mas sem a lei vamos abrir as portas do inferno, agravando uma situação que faz do Brasil, em números absolutos de homicídios, o país mais violento do mundo.

Contrariando a vontade de 70% dos brasileiros, que segundo o Datafolha de julho passado se manifestaram contra o porte de armas, isto é, que civil possa andar na rua com arma na cintura, a chamada Bancada da Bala pretende tentar aprovar o porte. Contra essa ameaça, que nos igualaria aos EUA nos massacres frequentes em escolas e igrejas, 15 entidades importantes, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a Iniciativa das Religiões Igrejas Unidas, e parlamentares contrários à violência armada, vão promover um ato amanhã, às 15 horas, na Câmara Federal. Constará do lançamento do meu novo livro Armas para quê? (Editora LeYa), dedicado in memorian à jornalista do Correio Braziliense Valéria de Velasco, que tanto lutou pela aprovação e implementação do Estatuto do Desarmamento, e debateremos formas de preservar uma lei que tem salvado tantas vidas.(...)

 

ANTÔNIO RANGEL BANDEIRA

Sociólogo e ex-consultor da Organização das Nações Unidas (ONU)

 

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