Título: Um papa na tempestade
Autor: Murilo Mello Filho
Fonte: Jornal do Brasil, 06/04/2005, Caderno B, p. B2

Há 26 anos, um colégio composto de outros cardeais escolhia, na 7ª votação, o cardeal Karol Wojtyla, arcebispo de Cracóvia, para chefe da Igreja Católica, como o 260º papa desde Pedro. O mundo inteiro ficou surpreso, pois, afinal, aquela era a primeira vez que se elegia um não-italiano, um eslavo, ilustre desconhecido de uma humilde aldeia polonesa.

Ao empossar-se, recebeu de sua Igreja uma carta pétrea, com dogmas e doutrinas intocáveis, escrita há dois mil anos e que lhe competia apenas cumprir, para, como agora, transmiti-la, intacta e indene, ao seu sucessor, a ser eleito dentro de mais 15 ou 20 dias por um Sacro Colégio de 117 cardeais, dos quais 114 nomeados por ele mesmo.

Não ficou isolado nos muros do Vaticano, nem foi preciso muito tempo para que provasse ao que viera: libertar a Europa Oriental do jugo soviético e derrubar o Muro de Berlim, sem um só canhão, um soldado ou um tanque, sem dar um único tiro, como chefe de um dos menores Estados soberanos, com 44 hectares, mas que viria a ser talvez o maior líder do mundo moderno.

Ele havia sofrido sob o nazismo e o comunismo, com a invasão da sua Polônia pelos ''panzers'' de Hitler e pelos blindados de Stalin; conhecera a pobreza e o desamparo; e ainda, na Praça de São Pedro, receberia uma saraivada de tiros, disparados pelo turco Agka, que depois visitou na prisão, perdoando-o e oferecendo-lhe uma medalha da Virgem Maria.

Logo após, em 1981, esteve no Santuário de Fátima, onde foi agradecer a proteção contra as balas criminosas. Era o 64º aniversário da aparição da Virgem aos três pastoresinhos em 1917 e revelou-se então o terceiro segredo da profecia então feita: a de um bispo todo de branco, que caminhava no meio de crianças, como ele mesmo.

Foi um papa ecumênico e conservador, tradicionalista e universal, inter-religioso e respeitado por todos os credos; os evangélicos, de Lutero; muçulmanos, de Maomé; judeus, de Moisés; espíritas, de Kardec; budistas, do Budha; hindus dos Vedas; e brâmanes do Ramayana.

Sem fazer nenhuma concessão à demagogia e ao populismo, era radicalmente contrário a bandeiras populares e simpáticas. Apesar disso, nunca houve um papa tão popular e carismático como ele. Onde quer que estivesse, nos cinco continentes, arrastava e reunia multidões.

Foi também o papa que voou um total de quilômetros suficientes para cobrir três vezes o itinerário da Terra à Lua e dar dez vezes a volta ao globo. Nessas viagens, revelou-se um papa ''pop-star'', especial e diferente, midiático e fora-de-série, que dançava com homens, mulheres e jovens, sobretudo os jovens, como se estivesse num Woodstock de sua própria Igreja.

Em 2002, aos 82 anos, lançou um livro de poemas, Trilogia romana, editado em vários idiomas, quando pela primeira vez se referiu à sua própria morte, considerando-se preparado para ela e pedindo a Deus que iluminasse os membros do Sacro Colégio ao se reunirem, como agora, para escolher o sucessor.

Seu pontificado foi um dos três mais longos de toda a história da Igreja, superado apenas pelos 37 anos de São Pedro, numa designação de Jesus, e pelos 32 anos de Pio IX na sucessão de Pio VIII. Encurvado e andando ultimamente com enorme sacrifício, levou o Evangelho a toda a gente e às mais longínquas paragens deste mundo globalizado, com um rebanho de 1 milhão e 100 mil católicos. Sua autoridade espiritual crescia na razão direta em que diminuía sua resistência física.

Foi um peregrino itinerante e missioneiro que esperou pacientemente a decisão divina de levá-lo para a outra vida. Agora está morto, após cumprir o martírio do seu Calvário, na ''Imitação de Cristo''. E, de volta à sua Casa, já habita uma galáxia muito melhor do que esta nossa, sentado à direita do Deus Pai Todo-Poderoso e intercedendo junto a Ele em favor de todos nós.

João Paulo II foi um continuador da obra de São Francisco, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, São Bento, São Inácio de Loyola, Anchieta e Vieira, Frei Caneca e Frei Miguelinho, todos eles apóstolos e mártires imolados, que tanto engrandeceram e dignificaram os Evangelhos.

Em seu exemplo, bem pode estar o segredo da sobrevivência do catolicismo e do Vaticano, que não se encastelam mais numa torre de marfim, nem se enclausuram num cenáculo hermético e inacessível, mas que, através das missões, da catequese e do apostolado, preferem ser partícipes atuantes e presentes em todo o universo.

Mais de cem anos passados, não se confirmou a proclamação feita em 1895 por Nietzsche, para quem ''Deus morreu''.

Ao longo de 20 séculos, a obra e a mensagem de Cristo vêm enfrentando tempestades e vendavais. Mas, de umas e de outros, têm saído sempre fortalecidas e revigoradas. Não só não morreram como estão cada vez mais atuais, como se quisessem confirmar aquela promessa de que, edificadas sobre pedra, contra elas não prevalecerão as portas do inferno e também aquelas estrofes segundo as quais ''céus e terras passarão, mas a Sua palavra não passará''.