Título: Renan Calheiros é Severino com freio
Autor: AUGUSTO NUNES
Fonte: Jornal do Brasil, 07/04/2005, País, p. A2

O alagoano Renan Calheiros infiltrou-se no universo político pela última porta do corredor à esquerda de quem chega. Mal saído da adolescência, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil, o PCdoB velho de guerra, que então se orientava pelo farol instalado na Albânia: o ditador Enver Hoxha. Até as cabras montanhesas que abundam naquele país sabiam que o conteúdo do livrinho de pensamentos do ditador era tão raso quanto riacho nordestino. Renan demorou mais tempo até descobrir-se habitante de uma terra da fantasia. Mas a temporada no PCdoB ao menos lhe ensinou uma das duas lições que marcariam a trajetória política: quem apóia um Enver Hoxha consegue apoiar qualquer um.

A segunda lição, conseqüência e complemento da primeira, ensina que só quem fica ao lado do governo do momento tem acesso a cargos e verbas, além de outros favores fisiológicos, indispensáveis a alguém obcecado pelo mando. Essa lição começou a ser assimilada em 1982, quando se instalou na Câmara dos Deputados depois de quatro anos na Assembléia.

O passado de guerreiro comunista aconselhou-o a esperar o fim do regime militar. E então emergiu o governista uterino. Sem cacife suficiente para ampliar espaços no governo José Sarney, fez um curso intensivo em Alagoas: no final da década de 80, virou secretário de Educação do governador Fernando Collor.

O deputado estadual oposicionista batizara Collor de "príncipe herdeiro da corrupção". O gosto do poder adoçou a garganta do secretário de Estado. "Apesar de adversários no passado, sempre fomos amigos", jurou. Os amigos se tornaram cúmplices. Renan estava no jantar em Pequim em meio ao qual emergiu a idéia que mais parecia travessura de rapazes: que tal transformar o homem na cabeceira da mesa em presidente da República?

Alguns meses depois, transferidos do PMDB para uma esperteza batizada de Partido da Reconstrução Nacional, Renan subiu com Collor a rampa do Planalto. Líder do PRN na Câmara, cumpriu-lhe defender o conjunto de medidas que incluiu o confisco do dinheiro depositado por milhões de brasileiros em cadernetas de poupança. Defendeu com veemência o indefensável.

"Quem não entender que o Brasil mudou perderá o bonde da História", declamava Renan ao ouvir críticas ao chefe. O Brasil mudara mesmo. Mudara tanto que, pela primeira vez, um presidente seria apeado do posto pelo instrumento do impeachment. Renan pressentiu o naufrágio e abandonou o barco antes de consumado o desastre. Soube baixar o bote com agilidade e eficácia: assistiu ao epílogo do drama como integrante do grupo dos acusadores.

Distribuiu denúncias que alvejaram meio mundo. Nenhuma envolvia o vice-presidente Itamar Franco, que logo assumiu a vaga e teve em Renan, de novo no PMDB, um bravo aliado. No Senado desde 1994, aperfeiçoou ali a arte do namoro pendular: ligeiros distanciamentos tornam o reencontro mais belo (e, quase sempre, mais lucrativo). Durante a Era FH, valendo-se de truques do gênero, ganhou o Ministério da Justiça e a senha para o acesso permanente ao Olimpo.

A ascensão de Lula exigiu-lhe poucos retoques no discurso para selar outro namoro. O casamento de conveniência já lhe permitiu alcançar aos 55 anos, sem sobressaltos, a presidência do Senado. E indicar Romero Jucá para o Ministério da Previdência.

Lula está arrependido: vista com lupa de detetive, a biografia de Jucá fica muito parecida com prontuários. É improvável, porém, que o presidente tome decisões indesejadas pelo parceiro alagoano. Renan Calheiros é um Severino Cavalcanti com freios. E sabe manobrar como poucos para defender as vagas que consegue ocupar nas garagens do poder.