Título: ''Dou nota 7 para a Saúde''
Autor: Daniel Pereira e Paulo de Tarso Lyra
Fonte: Jornal do Brasil, 04/04/2005, País, p. A3

Um dos sobreviventes da minirreforma ministerial, o pernambucano Humberto Costa dá nota sete para a rede pública de saúde. Reconhece, no entanto, que a menção, digna de alunos de desempenho acima da média, decorre de resultados obtidos em áreas de alta complexidade, como cirurgias cardíacas e tratamento de câncer. ¿ Para o atendimento de urgência, de emergência, consultas, onde está o gargalo, onde estão as filas, não vale hoje mais do que cinco ¿ avalia Costa. O ministro afirma que a situação dos hospitais públicos no município do Rio de Janeiro é a mais caótica do país. Sob tal argumento, afasta a possibilidade de haver motivação política na intervenção realizada em seis hospitais federais localizados na capital fluminense.

¿ Descaso, falta de pagamento de fornecedores e profissionais, desabastecimento de remédios, equipamentos quebrados. A aura de bom gestor caiu. Então, ele precisa dizer que tudo foi feito para tentar abater a candidatura (presidencial) dele ¿ diz Costa, referindo-se ao prefeito Cesar Maia (PFL).

Na entrevista ao Jornal do Brasil, na qual respondeu apenas com um sorriso contido à pergunta sobre a fritura a que foi submetido durante as negociações da reforma ministerial, Costa também comenta mortes de crianças índias, eutanásia e autorização de aborto no caso de feto sem cérebro.

¿ As pessoas devem ter direito não à eutanásia, mas a uma morte natural, ou seja, não prolongar desnecessariamente a vida por um meio artificial ¿ declara Costa, que é favorável a deixar nas mãos da família a decisão sobre o desligamento de aparelhos como os que mantiveram viva a norte-americana Terri Schiavo.

¿ A intervenção foi decisiva para sua permanência no ministério?

¿ Não tenho como fazer esse julgamento porque em nenhum momento participei diretamente de qualquer discussão sobre a reforma ministerial. O presidente conhece o nosso trabalho, mas naturalmente que na política tudo é possível. Poderia ter acontecido a mudança.

¿ Por que não houve intervenção em outras cidades?

¿ A razão foi o processo de deterioração acentuado das condições de assistência à saúde da população no Rio. Foi a situação de descaso. Na verdade, nem intervenção é. Essa palavra está mal colocada. A decretação da situação de calamidade pública na rede hospitalar do município do Rio aconteceu como um ato extremo. Tentamos encontrar uma saída negociada para a situação. Apresentamos propostas ao prefeito Cesar Maia. Enquanto estávamos negociando, várias vezes ele foi a público atacar o Ministério da Saúde, me atacar pessoalmente, de modo que não estava investindo em um acordo. Fizemos propostas bastante interessantes para o município em termos de aporte de recursos financeiros, que qualquer município aproveitaria, e ele continuou na posição de que não aceitava. Como a percepção da opinião pública era de que por conta de uma briga a população está sofrendo, nos vimos obrigados a garantir o atendimento.

¿ A situação no Rio é a mais caótica ou pesou o fato de ser vitrine nacional?

¿ Com certeza, é a situação mais caótica do país. É importante repetir: o próprio prefeito Cesar Maia iniciou essa discussão (ao dizer que devolveria hospitais ao governo federal). Fica parecendo, na pergunta, como se fosse uma decisão do governo decretar a intervenção. O nosso interesse não é ficar administrando sistema municipal de saúde nem hospital. O papel do ministério é outro.

¿ Então, não há motivação política?

¿ É um argumento que carece de sentido, uma desculpa política. Cesar Maia vendeu ao Brasil durante muito tempo a sua competência como administrador. Quando entramos lá, encontramos um quadro muito pior do que a gente imaginava. Descaso, falta de pagamento de fornecedores e de profissionais, desabastecimento de medicamentos, equipamentos quebrados. A aura de bom gestor caiu. Então, ele precisa dizer que tudo foi feito para tentar abater a candidatura (presidencial) dele. A relação do presidente da República com Cesar Maia sempre foi a melhor possível. Até mesmo nesse processo de negociação, ele chegou a dizer: `O Ministério da Saúde não, mas o resto do governo me trata muito bem¿.

¿ Existe um prazo para o término da intervenção?

¿ Esperamos que seja o mais curto possível. Primeiro, precisamos tirar os hospitais da situação de calamidade pública. Estamos fazendo isso, garantindo o abastecimento de medicamentos e outros insumos, a compra de equipamentos e a realização de algumas reformas físicas para acolher as pessoas adequadamente. Com a situação devidamente saneada, criaremos as condições para que nossa presença seja desnecessária. Também estamos preocupados em tomar atitudes que permitam uma mínima estruturação do sistema de assistência da saúde pública no Rio. Estamos trabalhando com a secretaria estadual na implantação de um sistema de regulação que permita organizar o fluxo de atendimento de urgência, emergência, de internação, de consultas especializadas. E temos de pensar em conjunto com o governo do estado, mas independe da nossa presença nesses hospitais fazer com que haja pontos onde a população possa procurar o atendimento e não sobrecarregar as unidades maiores.

¿ Qual a contrapartida que será cobrada do município?

¿ Qualquer lugar no Rio em que se colocar um consultório, formará uma fila, porque as pessoas não têm acesso ao atendimento perto das suas casas. O atendimento mais simples não existe. Para se ter uma idéia, no dia em que abriu aquele hospital de campanha, a maior fila era para medir pressão arterial e a glicemia. A estruturação do atendimento básico é essencial, além de um sistema de regulação. São duas coisas que a gente tem de exigir como contrapartida do município. Como gestor atual, no entanto, quem tem de conduzir todo esse processo é o próprio estado. Queremos contribuir para que se organize um cinturão em torno da região metropolitana, evitando a sobrecarga.

¿ A população do Rio reclama muito do atendimento nos hospitais universitários...

¿ Temos a Política Nacional de Reestruturação dos Hospitais de Ensino, por meio da qual estabelecemos um contrato de metas. Nesse contrato, o hospital de ensino primeiro tem que se inserir no SUS. Uma das queixas da população é que esses hospitais não têm atendimento de emergência, escolhem quem são os pacientes. Eles têm de passar a receber os pacientes referenciados pelo SUS. Assinado esse contrato, eles ainda são obrigados a ter atividades de ensino, pesquisa, implantar políticas de humanização do SUS. Terão de realizar tantas cirurgias, consultas e exames. Nós vamos monitorar o processo. Como contrapartida, o Ministério da Saúde dá a eles um recurso global. O Pedro Ernesto deverá também entrar nesse processo.

¿ O que pode ser feito para tornar os concursos públicos mais atrativos?

¿ Melhores salários, com certeza.

¿ Há um plano?

¿ Estamos trabalhando o chamado Plano de Cargos e Carreira do SUS. Não só é uma tentativa de viabilizar a presença do profissional naqueles locais onde ele não está, como também permitir que haja uma progressão na carreira. Como no Judiciário. Essa é uma saída. A idéia é pagar um salário razoável, construído a partir de um fundo formado por recursos aportados pelos governos estadual, municipal e federal, como é o Fundef.

Qual o salário médio de um médico da rede pública?

¿ Varia de estado para estado, de município para município. Tem lugares que pagam muito bem, outros que pagam muito mal.

No município do Rio é de quanto?

¿ Não tenho idéia.

¿ Há a possibilidade de usar a área de saúde das Forças Armadas não apenas em situações de emergência?

¿ Para prestação de assistência nas áreas urbanas, é bem difícil, porque o serviço médico das Forças Armadas atende as Forças Armadas. Inclusive, uma parte desses recursos vem dos soldos dos militares. Em princípio, não há essa idéia. Precisamos é estruturar os serviços de saúde no Brasil.

¿ O senhor foi muito criticado por ter dito que as mortes de crianças índias estavam dentro do normal...

¿ Me expressei mal e fui mal compreendido. O quadro da saúde indígena no Brasil é escandaloso, terrivelmente preocupante. Qualquer indicador (negativo) de saúde nas populações indígenas é quase o dobro em relação à população em geral. O que está acontecendo é que aquelas mortes que sempre ocorreram estão vindo a público. Foi isso que quis dizer. Não houve incremento de uma situação que já é escandalosa. É um problema complexo. Envolve uma ação que precisa ser intersetorial. Muitas dessas áreas indígenas não propiciam às famílias a produção dos alimentos.

¿ Há risco de falta de medicamentos para tratamento de Aids?

¿ Não, a rede já está inteiramente abastecida. O desabastecimento localizado ocorreu porque tivemos problemas com os laboratórios públicos, que terminaram atrasando a entrega. Também não foi culpa deles porque houve atraso na entrega da matéria-prima. Se tivéssemos recebido a informação antes, teríamos feito a aquisição emergencial mais cedo.

¿ Como resolver essa defasagem de informações?

Para impedir que outra situação como essa aconteça, estamos implantando um sistema de monitoramento que permite identificar o estoque em cada uma das 450 unidades de dispensação (lugares onde se fornece o medicamento). Estamos também acompanhando in loco a produção dos medicamentos pelos laboratórios públicos. A gente tem que fazer isso porque os laboratórios têm algumas dificuldades de gestão.

¿ O senhor é favorável ao aborto de fetos sem cérebro?

¿ Sim. Acho que não é justo uma mulher carregar no seu ventre, durante nove meses, um ser que será inviável. Apesar de respeitar a posição da Igreja, seria até um contra-senso da lei não permitir. No caso de um aborto por estupro, em tese a vida é viável, e a lei admite que se possa interromper a gravidez.

¿ O debate sobre a eutanásia pode chegar ao Brasil?

¿ Pode. Participei de um debate com o deputado Roberto Gouveia (PT-SP), que tem um projeto que apoiamos chamado Código de Defesa dos Usuários dos Sistemas de Saúde. Diz que tanto uma pessoa quanto sua família podem rejeitar algum tipo de tratamento que considerem capaz de gerar sofrimento. Acho que as pessoas devem ter direito, não à eutanásia, mas a uma morte natural, ou seja, não prolongar desnecessariamente a vida por um meio artificial.

¿ Qual a nota que o senhor dá para a rede pública de saúde?

¿ Nota sete. Acho que vale nota nove a área da alta complexidade, de transplantes, cirurgias cardíacas, tratamento do câncer. Nota nove para os nossos padrões, de um país de terceiro mundo. Para o atendimento de urgência, de emergência, consultas, onde está o gargalo, onde estão as filas, não vale hoje mais do que cinco. Por isso, a gente está trabalhando para tentar aproximar esta nota do nove.