Correio Braziliense, n. 20644, 30/11/2019. Política, p. 04

Especialistas veem revanche



A polarização política abriu a porta para o desmantelamento dos setores do governo envolvidos com a cultura. Na opinião de estudiosos e especialistas, não se trata de combater o chamado “marxismo cultural”, várias vezes entoado por personagens do primeiro escalão, e substituí-lo pelo pensamento “de direita”. O que se percebe é a desarticulação pura e simples. E o mais recente passo nessa direção, dizem, é a colocação de um crítico feroz do movimento negro, Sérgio Camargo, no comando da Fundação Palmares.

Para o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Geraldo Tadeu Monteiro, a expressão “marxismo cultural” não possui base histórica e é utilizada com fins políticos. Ele aponta que há uma disputa entre valores e ideais.
“Era esperado o comportamento agressivo contra o pessoal da cultura, tido como historicamente ligado à esquerda. Bolsonaro também constrói a narrativa de que o setor é corrompido por verbas oficiais. A retórica, com relação a isso, foi no sentido de que artistas, intelectuais, muitos dos quais apoiadores do PT, se serviam de recursos públicos para produzir peças, e esses produtos seriam formas de doutrinação da esquerda. A narrativa é essa. Há uma hostilidade contra a área.”
Monteiro ressaltou que Bolsonaro não apresenta planos de política cultural, mas segue derrubando o que é contrário aos seus ideais, governando para seu grupo eleitoral mais empedernido.
“Não existe marxismo cultural. É uma invenção da extrema direita, que não tem nenhum contato com área da cultura. Para eles, é hora da revanche. Se constrói esse mito de sexualização das crianças na escola, doutrinação política na sala de aula, caça a filmes da Ancine. Não existe política cultural, mas desejo de revanche. Coloca pessoas contrárias ao poder para destruir essas estruturas, o que ocorre em outras áreas.”O professor de ciência política na Universidade de Brasília (UnB) Aninho Irachande afirma que a visão do governo sobre a área da cultura vai na direção contrária a da tradição brasileira.
“Ocorre a construção de um discurso para tentar legitimar as ações ou invalidar um pensamento diferente. Essa ideia de ideologia na manifestação cultural serve para vender um projeto não democrático. É lamentável que um presidente eleito democraticamente imagine que tenha que fazer política para parcelas da população que comunguem com as intenções dele, e não com a totalidade. Por outro lado, não apresenta nenhum projeto, só de destruição e desmantelamento do que vem sendo construído. As maiores práticas culturais que vêm sendo derrubadas não são do PT. Muitas são anteriores. Não há projeto para substituir o que está sendo desmantelado.”
 
Mais mudanças
A escolha de Sérgio Camargo na presidência da Fundação Palmares talvez seja a nomeação no setor da cultura que causou mais controvérsia. Houve outras. Como a do secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, que está à frente da pasta desde o último dia 7. Ele também é conhecido pelas polêmicas, como a que chamou a atriz Fernanda Montenegro, de 90 anos, de “sórdida”, “intocável” e “mentirosa”, provocando reação de artistas e intelectuais.
Desde o começo da semana, ele promoveu mudanças em cinco das seis secretarias da pasta – e novas podem ocorrer semana que vem. Ele é o responsável pela colocação de Katiane de Fátima Gouvêa na Secretaria do Audiovisual da Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania, empossada dia 27 passado. A nova secretária não possui experiência na área, mas teve seu nome ligado a um documento que, meses atrás, incentivou Bolsonaro a quase extinguir a Ancine (Agência Nacional de Cinema). O presidente recebeu um relatório de projetos aprovados pela agência que considerou “absurdos”, como Born to Fashion, um reality show que se propõe a revelar modelos trans.
À frente da Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura está Camilo Calandreli, que se define cristão, conservador e seguidor de Olavo de Carvalho. É formado em música pela Universidade de São Paulo e afirmou que a Lei Rouanet era utilizada pelo “marxismo cultural”. Mais uma escolha de Alvim, que não quis comentar as substituições.