Título: O fim de um longo companheirismo
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 04/04/2005, Internacional, p. A8

Para qualquer repórter cobrindo a vida do papa João Paulo II, a morte caminha por aquela linha fina entre a perda pessoal e a profissional. Em mais de 25 anos viajei pelo mundo com ele - da Quinta Avenida de Manhattan às estepes do Cazaquistão, da Terra do Fogo, no Chile, ao gelo do Alasca. Voei em seu avião em mais de 70 de suas 104 viagens ao exterior, estive na mesma sala em que ele saudou líderes como Mikhail Gorbatchev e Ronald Reagan. Ganhei até um pedaço de bolo que suas freiras haviam assado para ele em seu refúgio nas montanhas. No domingo, estive entre os poucos que puderam entrar na Sala Clementina, para ver o corpo do papa em um rito funeral privado para funcionários do Vaticano e dignitários.

A expressão dolorosa e serena era adequada ao polonês que venceu os horrores da II Guerra, a invasão de seu país pelos nazistas, os duros anos do comunismo, uma tentativa de assassinato, mas sempre manteve o otimismo. De perto, mesmo na morte sua face tinha aquela mistura de careta e sorriso - receita para uma vida plena. Nas minhas memórias, poucas emoções se igualam às de segui-lo a cada vez que retornava à pátria, onde seus compatriotas o viam como libertador. Quando o papamóvel passava por um mar de conterrâneos, eles se ajoelhavam como trigo curvando-se ao vento.

Enquanto seu corpo jazia, as faces que observei mais de perto eram as dos poloneses na sala. Eram os mais perdidos, os mais órfãos. O secretário particular, arcebispo Stanislaw Dziwisz, que o acompanhou por mais de 40 anos e a quem o papa amava como um filho, corajosamente segurava as lágrimas. Em dado momento, Dziwisz deixou sua cadeira e se aproximou do corpo. Tinha a mesma maneira de caminhar, contemplação carinhosa, segurança e familiaridade com a qual se aproximara milhares de vezes antes para ajustar o manto, segurar para João Paulo II um discurso ou ajustar o microfone. Então, notando sua inutilidade, voltou à cadeira.

Estive naquele salão centenas de vezes, tantas que nem olhava mais os afrescos. Vi, em 4 de junho de 2004, o papa dizer ao presidente dos EUA, George Bush, que o Iraque precisava retomar a soberania. Agora esse antes robusto homem que não temia a ninguém, mas tentava respeitar a todos, estava ali, sua face amarelada, suas mãos enceradas.