Título: A última bênção
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 04/04/2005, Internacional, p. A8

Antes da morte, João Paulo II fez um gesto de carinho pelos que sofriam por ele: um sinal da Cruz voltado para a janela que se abre para a Praça de São Pedro

VATICANO - Até nos últimos momentos o papa João Paulo II se preocupou com seus fiéis. Percebendo que o fim estava próximo, o santo padre reuniu as derradeiras forças, levantou a mão direita e fez o sinal da cruz em direção à janela do quarto de onde costumava abençoar a multidão na praça de São Pedro. Agora o fazia para as pessoas há dias em vigília no local. Ainda com muita dificuldade, pronunciou a última palavra: ''Amém''.

- Ele fez um tremendo esforço e depois descansou - disse Janek Cielki, padre polonês que fazia parte do pequeno grupo no quarto do papa.

Após o gesto, o secretário de longa data, o bispo polonês Stanislas Dziwisz, sentou-se ao lado do pontífice e segurou sua mão. Ninguém era mais íntimo do papa do que Dziwisz. Ele já era secretário de João Paulo II desde quando este fora arcebispo em Cracóvia. Na manhã de sábado, foi o polonês quem deu ao papa o o óleo dos enfermos na liturgia da Extrema Unção. Um grupo de freiras polonesas que cuidavam da residência do papa, em Roma, se ajoelhou perto da cama e começou a rezar e a chorar. Finalmente, um pano de linho foi colocado sobre o rosto do líder da Igreja Católica.

Até a hora da morte, passaram pelo quarto, em momentos diferentes, algumas das personalidades mais poderosas do Vaticano: o cardeal camerlengo Eduardo Martinez Somalo - encarregado de conduzir a Igreja no chamado Interregnum - período entre a morte de um papa e a ascensão de outro -, o chefe da doutrina da fé, cardeal Joseph Ratzinger, um dos mais próximos colaboradores do papa, o secretário de Estado do Vaticano, cardeal Angelo Sodano e o cardeal americano James Stafford, cuja função é a de distribuir indulgências. Acompanharam ainda a exata hora do falecimento o arcebispo Leonardo Sandri - a ''voz'' do papa nos meses recentes, lendo seus discursos durante aparências públicas - o professor Mario Agnes, editor-chefe do jornal do Vaticano - L'Osservatore Romano - e o teólogo polonês Tadeusz Soyczen, um antigo amigo.

Na confirmação da morte, o Vaticano se limitou a dizer que ''todos os procedimentos previstos pela Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis, , promulgada por João Paulo II em 22 fevereiro 1996, estavam sendo providenciados''. O Universi Dominici é o protocolo que controla as regras para o processo de funeral e enterro. Os preceitos básicos existem há séculos, mas alguns detalhes foram modificados por sucessivos papados.

Graças a essas mudanças, o camerlengo Martinez Somalo não precisou bater três vezes na cabeça do papa com um martelo de prata e marfim para certificar a morte. Tal ritual foi excluído do protocolo cinco décadas atrás. Mas teve que levantar o pano sobre o rosto de João Paulo II e chamá-lo três vezes pelo nome de batismo: Karol Wojtyla. Para a tristeza dos presentes, o papa não reagiu ao chamado. Somalo então pronunciou em latim a sentença dos mortos, mortuus est do papa vere , que significa ''é verdade que o papa está morto''.

Pouco depois, na praça de São Pedro, o cardeal Sodano leu a mensagem oficial e recitou a De Profundis , comovente oração para os mortos que começa com a expressão ''Do fundo do abismo, clamo a vós, Senhor'' . O mundo tomava ciência do fim do pontificado. No L'Osservatore Romano , a seguinte frase foi impressa como manchete: ''Hoje, sábado, 2 de abril, às 21h37, o Senhor chamou para seu lado, o Santo Padre, João Paulo II''.

A multidão, que começou a afluir à praça de São Pedro assim que os sinais da morte do papa se tornaram iminentes, relutava em ir para casa. Peregrinos de todas as partes do mundo se dirigiam para o local, acompanhando milhares de pessoas que rezavam e entoavam louvores. Após a meia-noite, a polícia proibiu grupos de jovens de tocar vilão e cantar. A medida gerou protestos:

- Em uma noite como esta é uma absurdo dizerem para ficarmos em silêncio. O papa certamente gostaria de ouvir nossa música - reclamou um dos estudantes.