Correio Braziliense, n. 20672, 28/12/2019. Economia, p. 6-7

Criatividade para driblar a falta de emprego
Cristiane Noberto


O efeito mais cruel de uma recessão econômica, como a que o Brasil enfrentou entre 2015 e 2016 e da qual patina para sair desde então, é o desemprego. Para driblar a falta de oportunidade no mercado de trabalho e enfrentar a crise de cabeça erguida, muitos brasileiros recorreram à informalidade. Não à toa, o número de trabalhadores nessa condição bateu o recorde histórico de 38,8 milhões de pessoas no trimestre terminado em novembro de 2019, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada ontem pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quase metade da população economicamente ativa se vira como pode, com muita criatividade, mas sem nenhuma relação empregatícia ou proteção social.

No último dia da série Como sobrevivi à crise, o Correio conta a história de brasilienses que se dedicaram a atividades como fazer bolos, doces, unhas ou costurar para fora para garantir renda e o sustento da família durante a turbulência econômica do país. Em termos globais, a informalidade atinge 61% da força de trabalho, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A maioria concentrada em países menos desenvolvidos.

Neste ano, o desemprego começou a arrefecer, o que só foi possível graças ao aumento da informalidade. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), divulgado em dezembro, indica que, no acumulado do ano, foram criados mais 948.344 empregos e nos últimos 12 meses, 605.919 postos de trabalho. Em novembro, a PNAD contínua registrou a queda no desemprego, que caiu para 11,2%, número menor na comparação com o mesmo período de 2018, de 11,6%.

Segundo o diretor da FGV Social, Marcelo Neri, em 2012, era possível observar o desaquecimento da economia. "Já se falava em 'Pibinho', porém, ainda não refletia no mercado de trabalho", diz. Ele esclarece que, em 2014, foi a última vez que as taxas de emprego tiveram boas condições. A deterioração econômica, a partir de então, fez com que os dois anos seguintes dessem início ao declínio.

O especialista explica que os trabalhadores por conta própria já estavam crescendo, porém era mais uma questão de ser seu próprio patrão do que uma alternativa para a crise, que ainda nem existia."No período de recessão, esse mercado informal funciona como uma rede que sustenta o trabalho. É um declínio, porém ainda permite estratégias de sobrevivência. Nesses últimos anos, a retomada econômica foi muito lenta e os indicadores trabalhistas desabaram. As perdas atingiram principalmente os mais pobres", destaca.

Neri assinala que a informalidade pode ser classificada em dois tipos: trabalhadores por conta própria e sem carteira de trabalho. O primeiro consiste em pessoas que abrem negócios informais, e o segundo são aqueles que realizam trabalhos para outras pessoas mas não têm vínculo empregatício, pois não há carteira assinada. Nesse contexto, nenhum deles possui o registro de Microempreendedor Individual (MEI). "Por conta da informalidade, a educação aumentou em 8,9% no mercado de trabalho, o que é uma força favorável para o trabalhador. Isso gera aumento de competitividade", explica.

A crise não poupou ninguém, ressalta Neri. "Mesmo quem tinha grau escolar superior acabou migrando para a informalidade, devido à falta de oportunidades no mercado formal", diz. O encolhimento se refletiu nas jornadas de trabalho, na renda média e no lucro do negócios. "As pessoas precisaram desenvolver estratégias de sobrevivência", argumenta. "Esta é uma crise muito brasileira, porém as tendências mundiais são de ter menos empregos e mais tarefas. Isso veio para ficar. O trabalhador é cada vez menos empregado e mais fornecedor das empresas. Com a revolução digital, aplicativos oferecem de tudo a um clique. Pode não ser bom para a economia, mas é bom para o trabalho", avalia.

Desigualdade
A desigualdade social é um dos principais indicadores para o aumento da informalidade. Cerca de 13,5 milhões de brasileiros vivem com menos de R$ 145 por mês. O número bateu o recorde histórico do levantamento Síntese de Indicadores Sociais (SIS), divulgado em novembro deste ano. "A informalidade é uma maneira de subsistência que atinge, principalmente, a camada mais pobre da população. A chance para essas pessoas são poucas", explica Janaína Duarte, professora do departamento de serviço social da Universidade de Brasília (UnB). São os trabalhadores que vendem balinhas nos ônibus e panos de chão nos semáforos, pessoas que utilizam, basicamente, o corpo para realizar as atividades. Se para de trabalhar, por alguma doença ou incapacidade, perde dinheiro. "O trabalho informal é muito desprotegido, o que aumenta mais a vulnerabilidade das pessoas da base, pois elas não têm condições de competir com quem está no topo. O trabalhador é responsável por tudo, a compra de materiais, autofinanciamento, além da sua sobrevivência e da família", aponta.

Para a professora, as reformas, em especial a previdenciária, promovida neste ano, mas também a trabalhista, geraram um processo de regressão de direitos sociais, fazendo com que a população ficasse mais pobre. "Esses são fatores que aumentam a desigualdade social. Uma população gigantesca recebe uma fatia minúscula. Isso se reflete em tudo, trabalho, saúde, educação, cultura, em todas as áreas", destaca.

Para o futuro, a especialista não tem boas perspectivas. Segundo ela, a tendência é um aumento da informalidade, pois não há um bom horizonte no longo prazo. "Empreender é a saída? É uma questão de sobrevivência, mas vão continuar sem proteção, em especial nas questões trabalhistas. Quem tem condições de investir no negócio, mesmo que pouco, deve se preocupar com o inchaço do mercado na oferta de serviços. Precisa oferecer cada vez mais inovações aos clientes e se especializar para atender melhor os desejos dos consumidores. A grande questão é: quanto tempo conseguirá se manter sem fechar?", questiona.

Frase
No período de recessão, esse mercado informal funciona como uma rede que sustenta o trabalho. É um declínio, porém ainda permite estratégias de sobrevivência

Marcelo Neri,
diretor da FGV Social

Uma doce alternativa de inspiração japonesa

Okashi significa doce em japonês. André Simabuku, 25 anos, e a namorada Gabriela Ribeiro, 23, viram na palavra japonesa a saída para o desemprego que enfrentavam a partir da receita de biscoitos amanteigados da avó dele. Em 2017, o casal decidiu começar a produção na cozinha dos seus pais. De início, somente saíam biscoitos sabor baunilha e eram vendidos na família como uma renda extra.

A primeira conquista foi a parceria com um restaurante no Parque da Cidade, em Brasília, para o qual passaram a fornecer biscoitos mensalmente. A bolacha era servida acompanhando o café após a refeição, mas também ficava disponível em saquinhos menores, como brindes para os clientes que pedem comida via aplicativo.

"Fazer os biscoitos exige tempo, disposição e dinheiro. Para alcançar o nosso objetivo de vendas, tivemos que abrir mão de saídas nos finais de semana e até de pequenos luxos, como comer fora ou viajar. Mas todo o tempo gasto nos preparos dos biscoitos, assim como o dinheiro investido, vale a pena quando recebemos o feedback dos nossos clientes satisfeitos", relata André.

Em janeiro de 2019, Gabriela engravidou e a necessidade de aumentar os rendimentos bateu à porta. Assim, passaram a oferecer outros sabores de biscoitos e os lucros começaram a aumentar em junho. O casal partiu para uma divulgação mais ativa nas redes sociais e passou a produzir cartões de visita, que acompanham os produtos. Além disso, André e Gabriela buscam parcerias com outras lojas independentes de Brasília a fim de promover a marca.

"Aprendemos um pouco mais como sobreviver e se adequar ao comércio informal de alimentos. Descobrimos que, quanto maior a diversidade e a qualidade do nossos produtos, mais sucesso obteremos em vendas para alcançar nossos objetivos. É importante ter força de vontade e disposição e, acima de tudo, amar o que faz, pois esse é o principal ingrediente", ensina André. O próximo passo é aumentar as parcerias com cafés e restaurantes. "Daqui a um tempo, quem sabe, abrir uma lojinha ou um quiosque", projeta Gabriela, entusiasmada. (CN)

Uma doce alternativa de inspiração japonesa

Okashi significa doce em japonês. André Simabuku, 25 anos, e a namorada Gabriela Ribeiro, 23, viram na palavra japonesa a saída para o desemprego que enfrentavam a partir da receita de biscoitos amanteigados da avó dele. Em 2017, o casal decidiu começar a produção na cozinha dos seus pais. De início, somente saíam biscoitos sabor baunilha e eram vendidos na família como uma renda extra.

A primeira conquista foi a parceria com um restaurante no Parque da Cidade, em Brasília, para o qual passaram a fornecer biscoitos mensalmente. A bolacha era servida acompanhando o café após a refeição, mas também ficava disponível em saquinhos menores, como brindes para os clientes que pedem comida via aplicativo.

“Fazer os biscoitos exige tempo, disposição e dinheiro. Para alcançar o nosso objetivo de vendas, tivemos que abrir mão de saídas nos finais de semana e até de pequenos luxos, como comer fora ou viajar. Mas todo o tempo gasto nos preparos dos biscoitos, assim como o dinheiro investido, vale a pena quando recebemos o feedback dos nossos clientes satisfeitos”, relata André.

Em janeiro de 2019, Gabriela engravidou e a necessidade de aumentar os rendimentos bateu à porta. Assim, passaram a oferecer outros sabores de biscoitos e os lucros começaram a aumentar em junho. O casal partiu para uma divulgação mais ativa nas redes sociais e passou a produzir cartões de visita, que acompanham os produtos. Além disso, André e Gabriela buscam parcerias com outras lojas independentes de Brasília a fim de promover a marca.

“Aprendemos um pouco mais como sobreviver e se adequar ao comércio informal de alimentos. Descobrimos que, quanto maior a diversidade e a qualidade do nossos produtos, mais sucesso obteremos em vendas para alcançar nossos objetivos. É importante ter força de vontade e disposição e, acima de tudo, amar o que faz, pois esse é o principal ingrediente”, ensina André. O próximo passo é aumentar as parcerias com cafés e restaurantes. “Daqui a um tempo, quem sabe, abrir uma lojinha ou um quiosque”, projeta Gabriela, entusiasmada. (CN)

Se o diploma não serve, só empreender salva

O aumento do desemprego, a partir de 2015, levou muitas pessoas a viverem de bicos, trabalhando por conta própria ou abrindo pequenos negócios informais, mas também elevou a escolaridade dos desempregados, alerta o diretor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Social, Marcelo Neri. "O que antes era um processo de transformação, de escolha em ser seu próprio chefe ou ganhar algum dinheiro extra para a família, tornou-se a fonte de renda de muita gente. Nesse processo, a escolaridade aumentou. Não só porque as pessoas começaram a se especializar, mas também porque quem tinha maior escolaridade teve que migrar para esse lado", afirma.

Foi o que aconteceu com a arquiteta Raquel Cavalcanti Machado, 34 anos, moradora da Ceilândia Norte. Em 2012, formou-se e, desde então, trabalhou na sua área, em cargos comissionados do Governo do Distrito Federal. Porém, no meio de 2018, houve corte de gastos e Raquel foi exonerada. "Tentei achar emprego em construtoras, até em outras áreas, mas sempre buscando exercer minha profissão. Eu precisava ajudar meu marido nas contas e criar minha filha, que ainda é pequena", conta.

Raquel diz que sempre teve apreço por papelaria personalizada e, enquanto procurava emprego, foi adquirindo algumas máquinas para produzir as peças de uso próprio. "Fazia um topo de bolo para a festinha de alguma colega, uma agenda para minha filha na escola", destaca.

Porém, o tempo foi passando e as dívidas se acumulando. Como a maioria dos brasileiros, sem renda, não tinha como pagar. Até o apartamento próprio teve que ser alugado, fazendo a família voltar a morar na casa dos pais de Raquel. O marido também ficou desempregado e começou a dirigir para um aplicativo. Foi então que o hobby virou profissão. Mas mais dificuldades apareceram: era preciso comprar máquinas para que ela pudesse produzir em escala e com maior variedade. Raquel ainda precisava conhecer melhor as ferramentas, os tipos de papéis e correr atrás de novidades.

Aperfeiçoamento
A solução para o aperfeiçoamento de Raquel veio da internet, a partir de vídeos do YouTube. "Meu esposo e minha filha me ajudaram e ajudam muito. Vi muitos tutoriais na internet, muito vídeo no YouTube. Não tinha recursos para pagar cursos que são bem caros. As coisas não são assim: 'tenho a máquina, recursos e vou vender'. É preciso saber o que fazer com o que se tem na mão", relata.

Hoje, Raquel oferece fabricação de topos de bolo, artigos personalizados para festas em geral, sublimação de caneca de porcelana e customização de agendas, planners e cadernos. Os planos para o futuro são de expansão. "Quero deixar de ser um ateliê na sala de casa e virar uma loja física e virtual de sucesso", diz.

Mão na massa para sair da depressão

Durante mais de 20 anos Flávia Abreu, 39, trabalhou na área administrativa. Em seu último emprego, exerceu o cargo de coordenadora em um local onde sofreu muita discriminação por ser mulher em um nível hierárquico alto. Isso a deixou depressiva e, após seis anos de atuação, decidiu deixar o emprego, no início de 2017, em um Brasil que patinava para sair da recessão. Flávia tentou algumas seleções, pois precisava pagar as contas, mas era rejeitada por conta da ampla experiência que tinha. Além disso, o mercado de trabalho já estava em crise.

Então, resolveu que queria trabalhar para ela mesma, ser sua própria chefe, em uma coisa que achasse legal e que permitisse ficar mais perto da família. Assim, Flávia fez um curso de designer de sobrancelhas, mas não obteve sucesso. O fracasso, no entanto, não a abalou. A empreendedora lembrou que sempre gostou de fazer bolos, tanto que fazia para amigos e em todas as festas da família.

Flávia acreditou no seu potencial e, mesmo sem muito apoio familiar, no fim de 2017, partiu para a rua para vender seus "bolos na marmita", que produzia na cozinha da sua casa em Taguatinga Norte. Começou vendendo diariamente, a pé, e foi um sucesso. Os clientes começaram a perguntar se ela fazia outros produto. Foi quando surgiu a necessidade de se especializar.

Lágrimas
"O primeiro curso me deu uma base profissional para fazer (os bolos). Nas primeiras vezes, ficaram horríveis, a decoração tenebrosa, mas tinham sabor. Aí, eu comecei a ter os primeiros clientes por encomenda, que passaram a me indicar para outras pessoas. Sempre que alguém pedia algo que eu não sabia fazer, eu corria para aprender. Foram muitos bolos despencando, muitos treinos frustrados, chorei muito até chegar onde estou."

Recentemente, Flávia fez uma cirurgia para a retirada de um câncer na tireóide. Ela conta que as rendas dos doces foram essenciais para ajudar em todo o tratamento. Agora, o próximo passo é vender pela internet. "Não é só pelo dinheiro. É pela questão emocional, pelo prazer que eu tenho em trabalhar e em atender a meus clientes. E, ao mesmo tempo, conciliar tudo isso com a minha rotina de mãe, esposa, dona de casa e empreendedora", conta. (CN)

*Estagiária sob supervisão
de Simone Kafruni