Título: Rio São Frascisco: a Brasília de Lula
Autor: Paulo Lustosa
Fonte: Jornal do Brasil, 07/04/2005, Outras opniões, p. A11

A transposição é obra com a mesma dimensão que a da transferência da capital

Todos os grandes empreendimentos humanos, aqueles que rompem paradigmas e renovam e ampliam de maneira definitiva os horizontes da coletividade, são precedidos de atitudes céticas, que tentam barrá-lo, em nome da razão e do bom senso.

Camões, no Canto IV d'Os Lusíadas, fixou no Velho do Restelo, esse arquétipo da incredulidade. Diante da esquadra de Vasco da Gama, que, em 1497, se preparava para a epopéia das Índias, o personagem, ''de aspecto venerando, que ficava nas praias, entre a gente'', deu o seu recado desanimador, que se resumia no clássico ''não vai dar certo''.

Mas deu. E aí não se sabe o que, a respeito, disse o Velho. E é esse também outro aspecto indefectível nessas circunstâncias: diante do sucesso da empreitada, os que a agouraram desaparecem, como se jamais tivessem existido. Basta lembrar o que aconteceu aqui, no Brasil, no período que precedeu a construção de Brasília.

Juscelino foi execrado, chamado de louco, irresponsável, etc. Somente um louco se aventuraria a construir uma cidade no meio do deserto, ligando o nada a coisa nenhuma. O Velho do Restelo, personificado, entre outros, na falecida UDN, valeu-se dos mais sofisticados e cartesianos argumentos para barrar uma empreitada que iria mudar definitivamente a geopolítica nacional, ampliando nossa fronteira agrícola e política e estabelecendo condições para uma efetiva conquista de nosso território. É absolutamente improvável que ainda detivéssemos hoje o domínio da Amazônia se Brasília não existisse.

Foi ela, centralizando a capital, que permitiu o início do processo de interiorização do desenvolvimento. Hoje, o chamado agribusiness, que tem no Planalto Central o seu eixo, sustenta nossas exportações e é um dos itens fundamentais de nossa economia. Onde estão agora os ''velhos do Restelo'' da UDN que buscavam desacreditar JK?

Esse preâmbulo vem a propósito de outra obra seminal, em pauta já há alguns anos, e até agora não iniciada graças à ação dos ''velhos do Restelo'' caboclos. Refiro-me à transposição das águas do Rio São Francisco, empreendimento monumental, destinado a redimir econômica, política e humanitariamente uma das regiões mais sofridas do país - a região Nordeste.

Não faltam argumentos de toda ordem. Uns invocam o meio ambiente, outros os gastos orçamentários, outros, ainda, a inconveniência política. Todos padecem de miopia empreendedorial. Detêm-se na árvore e não vêem a dimensão da floresta. Felizmente, o presidente Lula é sensível ao desafio. Não sei se já vislumbrou todo o seu sentido revolucionário. A transposição é a Brasília de Lula. É obra com a mesma dimensão renovadora e ampliadora de horizontes que a da transferência da capital nos anos 60.

Os argumentos de ordem ambiental são fartamente respondíveis com outros da mesma ordem. É possível efetuar o empreendimento respeitando todas as premissas ecológicas, revitalizando o rio e levando-o a populações carentes, permitindo que tenham acesso ao progresso e ao bem-estar. Somente na região do semi-árido, temos hoje 23 milhões de brasileiros - quase uma Argentina inteira -, desprovidos de meios básicos para sobreviver. Morre-se de sede, desnutrição e insalubridade. No semi-árido, a mortalidade infantil é 95% maior que média nacional. Em Fortaleza, 55% da mortalidade infantil deriva de contaminação hídrica.

Os ''privilegiados'' migram para os grandes centros, pressionando ainda mais os serviços urbanos e sujeitando-se ao ambiente de violência e precariedade das periferias. A resistência de algumas lideranças políticas dos estados por onde passa o São Francisco não condiz com a grandeza do próprio Rio, que ainda detém a legenda de ''rio da integração nacional''. Com a transposição, mais que nunca o será.

Água é bem essencial. É preciso não perder de vista a hierarquia de seu uso, cuja prioridade é a manutenção da vida humana. E é ela que estará em pauta, sob todos os aspectos. A transposição, além de prover a sede e a fome de milhões, garantindo safras e pastos, gerará empregos, fará circular a renda, reduzirá as migrações, permitindo que, numa palavra, a cidadania chegue a lugares por onde nunca passou, nestes cinco séculos de história nacional.

O presidente Lula, nordestino e migrante, que conheceu de perto as agruras da escassez de água, precisa enfrentar as resistências que o empreendimento ainda gera. São resistências político-paroquiais, sem consistência, que podem ser superadas com a conscientização da opinião pública - inclusive a do Centro-Sul do país - para a grandeza do que está em jogo. Deve, o próprio presidente, tal como JK, fazer-se presente nos canteiros de obras, tocá-las de perto, como um Israel Pinheiro redivivo.

Se o fizer, receberá da história a mesma distinção que esta concede a Juscelino, cujos críticos sumiram na poeira do tempo. A transposição redime uma região que abriga 40 milhões de brasileiros e a integra, de maneira pujante, à economia nacional. Não pode haver iniciativa mais eficaz de inclusão social que esta. Esta será a marca maior do governo Lula.