Correio Braziliense, n. 20670, 26/12/2019. Política, p. 2

Política externa de solavancos
Luiz Calcagno
Bernardo Bittar


Polêmicas, amadorismo e recuos marcaram a política externa do governo Bolsonaro em 2019. Especialistas em relações internacionais, economistas e diplomatas afirmam que o Ministério das Relações Exteriores termina os primeiros 12 meses da atual gestão com a imagem desgastada — e internacionalmente enfraquecido. Com declarações explosivas e, muitas vezes, impensadas, o presidente da República teve importante papel nesse desgaste, que começou ainda durante a campanha eleitoral, com afirmações do então candidato de que a China, nosso principal parceiro comercial, queria “comprar o Brasil”. Posteriormente, o tom belicoso deu lugar a uma postura pragmática, e, pressionado pelo empresariado, preocupado com o risco de perder negócios bilionários, o governo voltou a tratar os chineses como parceiros.

O tom ideológico das ações da diplomacia brasileira é facilmente identificado. Bolsonaro recebeu e reconheceu o oposicionista Juan Guaidó como presidente da Venezuela. A ação não deu resultado e Nicolás Maduro continua firme no poder. O Brasil se alinhou incondicionalmente aos Estados Unidos e abandonou a postura histórica de condenar o embargo econômico a Cuba na Organização das Nações Unidas (ONU). O alinhamento também não trouxe retorno prático. Pelo contrário. O presidente norte-americano, Donald Trump, chegou a anunciar a retomada das tarifas sobre o aço e o alumínio brasileiros. Num afago a Israel, Bolsonaro prometeu transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, desagradando os países árabes, importantes compradores da nossa carne.

Para muitos analistas, o ponto positivo nas relações internacionais foram os recuos a cada solavanco, crítica ou sinal vermelho no caminho. No caso da China, a rusga terminou com uma viagem presidencial ao país asiático e o compromisso dos dois Estados de estreitar ainda mais as relações. O acordo entre o Mercosul e a União Europeia avançou, mesmo com a troca de farpas entre Bolsonaro e o presidente da França, Emmanuel Macron, por conta do aumento das queimadas na Amazônia.

Para o professor de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria, Gunther Ritcher Mros, há uma disputa de espaço entre pragmáticos e ideológicos no governo, e ela deverá continuar nos próximos anos. “A política externa sofreu um solavanco como poucas vezes se viu na história do país. Tivemos um primeiro ano ideologizado, com uma pauta que não se sustenta. Agora, devemos observar, nos próximos 12 meses, um cabo de guerra entre aspectos ideológicos, econômicos e financeiros. Vamos ver quem tem mais força até o fim do governo”, avalia.

Guru na fita

Mros constata uma forte influência do filósofo Olavo de Carvalho, tido como guru de Bolsonaro, na escolha do assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, Filipe Martins e do chanceler, Ernesto Araújo. “Nesses primeiros 12 meses, a política externa brasileira começou de um jeito e terminou um pouco diferente. No início, sofria muita influência ideológica dos grupos que elegeram Bolsonaro. A ideia de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém é uma demanda evangélica, e o grupo do sistema financeiro, buscando uma pauta liberal, definiu o Mercosul como um bloco que retornaria às raízes econômicas, de livre comércio”, exemplificou.

De acordo com o professor, foi a ala olavista que influenciou o alinhamento com os Estados Unidos. “O governo aceitou um alinhamento sem reciprocidade. Mas, a ameaça de Trump de sobretaxar o aço causou desconforto na cúpula do governo brasileiro. É preciso esperar os próximos passos para saber para onde vai a relação com os EUA. O Brasil é um país grande e é natural que outras nações tenham paciência com as trapalhadas. O fator tempo ajuda. Todo governo passa. As relações entre países continuam”, diz.

O Correio procurou o Itamaraty em sete ocasiões para comentar a política externa, mas o órgão não se dispôs a tratar do assunto.

Economia dita correção de rumos

Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Juliano da Silva Cortinhas avalia que, ao se alinhar incondicionalmente aos Estados Unidos, o Brasil abandonou, por um momento, o “jogo da política internacional”. Cortinhas também considera a possibilidade de o Brasil deixar o Mercosul. “Diante do grande amadorismo da atual política externa, há chances de isso ocorrer, mas seria um erro profundo. O Mercosul vem sendo construído desde 1991. Esperava-se que fosse algo maior, mas, se o Mercosul não caminha bem, cabe ao Brasil, que é um líder natural do bloco, corrigir o rumo da forma que melhor convier aos países-membros, e não abandonar o acordo”, afirma.

O prpfessor acredita que as ondas de protestos em países da América Latina podem chegar ao Brasil, mas diz que, se o cenário econômico melhorar, pode retardar ou amenizar esses movimentos. “Vejo como um processo natural a possibilidade de isso ocorrer. Não só porque há uma série de problemas na condução da política no Brasil, com ataques a minorias e tensões na relação entre governo e sociedade, mas porque existe, no mundo todo, uma insatisfação popular com os mais diferentes tipos de governo. Não é um processo ligado a ideologias políticas. As populações estão insatisfeitas com a forma que a política vem sendo feita. Isso se acentuou na última década”, afirma.

Otimismo

Economista e professor da Fundação Getúlio Vargas, Mauro Rochlin, por sua vez, destaca que más escolhas podem trazer prejuízos econômicos para o país, mas demonstra otimismo com as mudanças de postura mostradas pelo governo nos últimos meses. “Espero que, nos próximos anos, o governo tenha uma visão mais pragmática da política de comércio exterior. Ignorar nossos principais parceiros é ingênuo. O governo parece dar sinais de recuperação da sensatez. Algumas relações que se degeneraram estão sendo revistas. O presidente acabou de visitar a China e países árabes. Foi uma mudança de postura. O mesmo aconteceu com a ida do vice-presidente Mourão à posse do novo presidente da Argentina”, diz.

“Demonstrar animosidade em relação à Argentina é contraproducente, pois o país é nosso terceiro maior parceiro comercial. E o governo deve repensar a postura de alinhamento automático com os EUA. Os interesses não são coincidentes. Por bem ou por mal, o governo vem sendo obrigado a rever posições”, observa.

Para Rochlin, está mais do que na hora de o presidente e o Itamaraty diminuírem o clima de atrito, que pode prejudicar as exportações em um período em que o mercado internacional tem se retraído. Os países árabes são importadores de carnes. Não dá para apoiar Israel. Não dá pra ignorar a China como grande importador de minério de ferro, carne e soja. “Temos dois pontos de atrito para resolver: EUA e Argentina. A sobretaxa (dos EUA) ainda não se concretizou, mas pode ser um ponto de fricção e um sinal de alerta. O governo tem que cair na real. Nosso apoio não se traduziu em qualquer tipo de benefício.”

O professor também faz um alerta sobre a eventual saída do Brasil do Mercosul. “Perderíamos importantíssimos parceiros comerciais. Quando a gente fala de comércio exterior, tem de pensar a longo prazo. A Argentina  pode se tornar um mercado similar ao norte-americano. Há algum tempo, eles importavam da gente mais do que os Estados Unidos”, destaca.