Correio Braziliense, n. 20726, 20/02/2020. Mundo, p. 12

Imigração mais difícil

Rodrigo Craveiro


 

O sonho de morar e trabalhar no Reino Unido ficou quase impossível para a maioria dos imigrantes. Dezenove dias depois da saída da União Europeia (UE), o governo britânico praticamente fechou as portas para os estrangeiros com pouca qualificação profissional, nível básico de inglês ou baixa remuneração. A partir de 1º de janeiro de 2021, depois do período de transição do Brexit, o imigrante que desejar o visto de trabalho precisará ter domínio do idioma, comprovar habilidades específicas e possuir uma oferta de emprego com um salário-mínimo anual de 20.480 libras esterlinas (ou cerca de R$ 116 mil). De acordo com Priti Patel, ministra do Interior, as mudanças anunciadas pelo governo Boris Johnson são “firmes e justas”, e visam facilitar a concessão de vistos à mão de obra altamente capacitada. “Nossa economia não dependerá mais de mão de obra barata da Europa, mas se concentrará mais no investimento em tecnologia e automação”, explicou Patel, em um dossiê que especifica o novo sistema de pontos a ser adotado para os imigrantes  (veja quadro) e pede aos patrões que se adequem a ele.

Empresários britânicos ensaiam resistência à medida, por temerem impacto desastroso sobre os setores da economia dependentes de mão de obra de baixa capacitação, como a saúde ou a indústria alimentícia. De inspiração australiana, o sistema de pontuação para os imigrantes atenderá a critérios obrigatórios, que somam 50 pontos, e adicionais. Para receber o visto de trabalho, será necessário um mínimo de 70. Segundo Patel, a medida “põe fim à livre circulação” e “prioriza os melhores talentos”, ao citar “cientistas, engenheiros e estudantes universitários”. Ela sugeriu que as empresas poderão recrutar funcionários entre os “8 milhões de trabalhadores economicamente inativos” no Reino Unido. O Partido Trabalhista (oposição) advertiu que “um ambiente hostil” aos imigrantes tornará mais difícil a captação de trabalhadores. Por sua vez, o Partido Nacional Escocês classificou a decisão do governo como “ideia ridícula e perigosa”.

Professor de inteligência e segurança nacional da Universidade de Leicester (Reino Unido), Rob Dover explicou ao Correio que a reforma imigratória britânica é consistente com o pensamento de Dominic Cummings, conselheiro de Johnson, o qual defende a perturbação radical da política e da economia, com vistas a resultados positivos a longo prazo. “O fato de o governo de Boris Johnson ter cinco anos de mandato para absorver essa perturbação lhe fornece espaço para colocar em prática todas as mudanças. Se o premiê não conseguir vender ao público que houve uma melhora na economia, os conservadores terão dificuldades eleitorais no centro e no norte do país”, comentou.

Vulnerabilidade

Dover lembrou que o sistema australiano baseado em pontos tem sido pré-sinalizado pelas autoridades britânicas desde 2018. “O governo deve ter concluído que goza de apoio político para implementá-lo. Trata-se de uma ousada abertura às negociações com a União Europeia sobre o comércio e a harmonização com o bloco”, admitiu. O especialista afirmou que os setores imediatamente vulneráveis a partir do próximo ano serão os serviços de bufê, de cuidados à criança e de assistência social. “As três áreas não são consideradas qualificadas, nem atraem altos salários, dois critérios-chave no sistema de pontos. Concluídas em tempo integral, essas carreiras não cumprem nem com a metade do mínimo de exigências do governo”, advertiu. “Porta-vozes do governo têm reunido a imprensa para dizer que a força de trabalho britânica precisará se intensificar e preencher as lacunas deixadas pela mão de obra não qualificada. A crença de que o mercado corrigirá e responderá, de forma adequada, a esses lapsos do mercado é algo sujeito ao experimento social em andamento: o Reino Unido do Brexit.”

De acordo com Dover, a politica britânica adota duas interpretações errôneas: a primeira, de que os migrantes da UE foram objetos da insatisfação popular expressa no referendo sobre o Brexit, em 23 de junho de 2016; a segunda, de que existe capacidade de sobra na força de trabalho do Reino Unido para ocupar os empregos de baixa qualificação. “Há poucas evidências de que os trabalhadores desejem aceitar esses postos de trabalho de baixa qualificação. A economia enfrentará considerável escassez de mão de obra”, prevê.

Eu acho...

“As vantagens do sistema baseado em pontos incluem o fato de ele ser de fácil explicação ao público; por isso, pode ser vendido como transparente e justo. Isso, é claro, disfarça as escolhas políticas que se enquadram em alguns dos critérios — particularmente, quais trabalhos são rotulados como qualificados e quais não o são. A noção de que um chef é menos qualificado do que um pedreiro parece estranha. O problema é que isso fornecerá um deslocamento do padrão estabelecido da migração: a própria secretária do Interior, Priti Patel, admitiu que os pais não teriam permissão de entrar no Reino Unido sob esse sistema. Se ela não viu contradição ou tensão em seu próprio apoio a essa política, é algo curioso. O problema do sistema de pontos é que ele imediatamente indica as lacunas no mercado de trabalho e em sua estrutura de apoio, principalmente em relação à educação e ao treinamento. Mas será muito popular entre o público que votou no Partido Conservador pela primeira vez em dezembro.”

Rob Dover, professor de inteligência e segurança nacional pela Universidade de Leicester (Reino Unido)

20.480 libras ou R$ 116 mil, é o valor do salário mínimo que os imigrantes precisarão comprovar receber anualmente para obterem um visto de trabalho no Reino Unido.

O sistema de pontos

Entenda as exigências do governo britânico para a entrada de migrantes no país:

Mínimo de pontos necessários para trabalhar no Reino Unido: 70

Critérios obrigatórios

(50 pontos no total)

1- Ter uma oferta de trabalho de uma empresa certificada: 20 pontos

2- A oferta de trabalho deve estar no nível das habilidades exigidas: 20 pontos

3- Falar inglês: 10 pontos

Critérios adicionais para ganhar pontos

1- Nivel educativo. Um doutorado relacionado ao trabalho que será desenvolvido vale 10 pontos.

Se o doutorado for relacionado a um trabalho em ciência, tecnologia, engenharia ou matemática: 20 pontos

2- Comparação salarial em relação ao limiar estabelecido no setor em que o imigrante deseja trabalho. Se o que pagarão está acima da média, 20 pontos. Se for 10% menor que a média, são 10 pontos. Se está acima dos 20%, zero ponto.

3- Caso se trate de um setor no qual haja escassez de trabalhadores no Reino Unido: 20 pontos