O Globo, n. 31557, 31/12/2019, Artigos, p. 2

Bolsonaro, Moro e as garantias
Miguel Caballero


 Assumindo o risco de prever que este 31 de dezembro transcorrerá sem reviravoltas políticas enquanto o presidente descansa numa praia da Bahia, a última controvérsia do primeiro ano do governo foi o aval de Jair Bolsonaro à lei que cria o juiz de garantias, desagradando ao ministro Sergio Moro. Ela é simbólica por ilustrar o principal desafio enfrentado pelo presidente nesses 12 meses: evitar a sangria do apoio da parcela da população que torce o nariz para a classe política, irritada sobretudo pela combinação, nos últimos anos, de denúncias de corrupção com a perda geral de qualidade de vida e dos serviços públicos.

Bolsonaro sabe que venceu porque conseguiu ser a personificação do antipetismo e do antissistema. Não chegaria ao Planalto sem os votos derivados do terremoto político causado pela Lava-Jato —a parte dita “ideológica” de sua plataforma, o conservadorismo moral turbinado no WhatsApp, seria insuficiente.


A imagem de ser alguém de fora do sistema ainda está relativamente preservada. A desarticulação e ausência de uma base aliada no Congresso limitam a capacidade de ação do Executivo, mas têm o efeito colateral de ajudar a manter o discurso da antipolítica, do governo que não entregou ministérios a partidos.

Mas a narrativa do líder disposto a varrer a corrupção do país já está avariada. No início do mês, o Datafolha apontou que 50% consideram ruim ou péssimo seu desempenho no combate à corrupção. O caso dos candidatos-laranja do PSL e a suspeita de rachadinha no antigo gabinete de seu filho Flávio lhe dão um telhado de vidro no governo e na família, ainda que não haja investigação sobre participação direta do presidente.

Atos presidenciais, porém, não podem ser terceirizados, e nem sempre é possível manter as aparências e conciliar o discurso eleitoral com o exercício do mandato. Em setembro, Bolsonaro pediu “desculpa” a apoiadores diante das críticas pela indicação do procurador-geral da República fora da lista tríplice votada pelo Ministério Público. Não foi possível —sequer foi tentado —disfarçar a escolha por um PGR “alinhado”, numa decisão que teve o custo de abrir uma fissura entre o bolsonarismo e o lavajatismo.

O caso do juiz de garantias tem potencial para ampliar essa rachadura por opor o presidente a Moro, ainda bastante popular, especialmente junto àqueles que Bolsonaro tem de evitar que o abandonem. Ao contrário de outras derrotas que sofreu, dessa vez o ministro não engoliu o sapo, e marcou posição em público. O juiz de garantias virou questão de honra para Moro. Menos pelo mérito da causa —em vários países onde a Justiça é elogiada existe a figura dos dois magistrados num só processo —, e mais porque o argumento anunciado por parlamentares a favor da separação entre quem supervisiona a investigação e quem julga foi a acusação de parcialidade do ex-juiz nas condenações do ex-presidente Lula. Ironicamente, o juiz de garantias virou o “artigo Moro” do pacote que ele próprio levou ao Congresso.

Na sequência do governo, Bolsonaro estará obrigado a dosar com estratégia a relação com o ministro se quiser evitar que a fissura entre bolsonarismo e lavajatismo amplie-se irreversivelmente, deixando-o restrito aos apoiadores “ideológicos”. Ao mesmo tempo, a tendência é crescer a desconfiança do presidente sobre a aspiração de Moro ao seu lugar.

Ao deixar a magistratura e migrar para a política, o então juiz alegou pretender evitar que se perdessem o que considera avanços logrados pela Lava-Jato, como ocorreu com a Mãos Limpas na Itália. Uma vez ministro, vem conhecendo limites à sua atuação, alguns impostos pelo próprio chefe. O discurso parece dado para quando (e se) for preciso explicar a ambição pelo Planalto.

Ao justificar a seu público a chancela ao juiz de garantias, numa live na última quinta-feira, Bolsonaro deu sinais de saber que terá de jogar xadrez. “Moro tem potencial enorme, é adorado. Pessoal fala que ele vai vir candidato a presidente. Se vier, que seja feliz, não tem problema, vai estar em boas mãos o Brasil, eu não sei se vou vir candidato em 2022”.

Bolsonaro terá de dosar com estratégia a relação com Moro se quiser evitar que a fissura entre bolsonarismo e lavajatismo amplie-se irreversivelmente.

Miguel Caballero é jornalista.