O Estado de S. Paulo, n.46144, 18/02/2020, Internacional, p. A7

CIA teve acesso direto a dados sobre violações de ditaduras sul-americanas
Greg Miller
Peter F. Mueller


 

As ditaduras sul-americanas usaram máquinas de criptografia da empresa suíça Crypto AG durante a Operação Condor, nos anos 70. Por isso, toda a repressão e as violações de direitos humanos na região chegaram ao conhecimento da CIA, que secretamente era dona da Crypto e usava o equipamento para espionar governos ao redor do mundo.

A operação sigilosa, feita em conjunto com o Serviço Federal de Inteligência (BDN), da Alemanha Ocidental, foi revelada na semana passada pelo

Washington Post. Para coordenar a Operação Condor – aliança entre os regimes militares para reprimir opositores –, as ditaduras da América do Sul estabeleceram uma rede secreta de comunicações.

Para organizar as ações, a CIA forneceu equipamentos de comunicação fraudulentos da Crypto para alguns dos regimes mais brutais e se colocou em uma posição única para saber a extensão de suas atrocidades. A conexão dos EUA com a Operação Condor está detalhada em documentos obtidos pelo

Washington Post e em arquivos descobertos por pesquisadores do National Security Archive (NSA), em Washington.

Os documentos não mostram qualquer esforço da agência ou de altos funcionários do governo dos EUA para denunciar ou impedir que as violações dos direitos humanos fossem revelados. O envolvimento da CIA com a Crypto, chamado de Operação Rubicon, permitiu a espionagem das comunicações de dezenas de países de Europa, Ásia, África e América Latina ao longo de meio século.

Os documentos refletem um eterno dilema da espionagem: existe a obrigação de intervir diante de ações ilegais, mesmo que isso comprometa o fluxo precioso de inteligência? Autoridades disseram que as revelações recentes intensificaram as discussões internas. “Questões éticas e morais são coisas nas quais você nunca para de pensar”, disse Rolf Mowatt-Larssen, ex-agente da CIA.

Ele se recusou a discutir a Crypto, mas reconheceu que tais programas exigem que aqueles que os executam enfrentem dilemas difíceis. “A espionagem envolve manipulação e traição. Muitas vezes, envolve pesar os interesses nacionais e o impacto sobre indivíduos”, disse. “O que você está fazendo no final vale o dano que está causando?”

O programa da Crypto era de coleta de informações, não de operações letais. Mesmo assim, o histórico interno detalhado da operação deixa claro que os espiões dos EUA enfrentaram dificuldades morais, éticas e até legais. A CIA se recusou a comentar a reportagem.

Um documento da Agência de Inteligência de Defesa (DIA), uma das dezenas agências de espionagem dos EUA, por exemplo, descreve os esforços dos países na Operação Condor – incluindo Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai – para compartilhar informações sobre alvos que os militares queriam presos ou mortos.

As ditaduras estabeleceram uma rede de comunicações usando máquinas de criptografia Crypto. Em 1977, a DIA observa que a “Argentina forneceu equipamento da Crypto à Condortel”, nome da rede secreta dos sul-americanos.

Os documentos indicam que os agentes da CIA ficaram alarmados com os abusos dos direitos humanos na América do Sul. Um memorando de 1976 para o vice-diretor da agência se refere a instruções enviadas aos embaixadores dos EUA na região para “expressarem séria preocupação dos EUA com os planos de assassinato previstos na Operação Condor”.

A CIA também tentou se proteger de “possíveis ramificações políticas adversas”, caso a Operação Condor se envolvesse em assassinatos e outras violações dos direitos humanos. Carlos Osorio, pesquisador do NSA, disse que os documentos da Crypto reforçam a percepção entre os sul-americanos de que as autoridades americanas fizeram pouco para impedir o derramamento de sangue. “Eles sempre suspeitaram da participação dos EUA, e o conhecimento é uma forma de participação”, disse Osório. “Esta é a confirmação dessas suspeitas.”

Segundo Osório, a Argentina chegou a suspeitar que os dispositivos vendidos eram vulneráveis e convocou funcionários da empresa para Buenos Aires. Entre eles, estava o diretor Heinz Wagner e outros executivos que sabiam que a Crypto era da CIA.

“Os argentinos demonstraram preocupação, mostrando fraquezas no equipamento, e exigiram uma explicação”, diz o documento. Wagner estava assustado. Se o regime lançava dissidentes de aviões no Rio da Prata, quem sentiria falta de um obscuro CEO suíço que não voltou de uma viagem de negócios?” Depois de modificar os equipamentos argentinos, Wagner retornou com segurança de Buenos Aires, mas a ditadura permaneceu no bolso da CIA.

A lista de países monitorados pela operação envolvendo a Crypto sugere que os espiões dos EUA teriam tido uma visão abrangente dos desenvolvimentos turbulentos em vários continentes por um longo período durante a Guerra Fria – massacres na Indonésia, abusos do apartheid na África do Sul e violentas repressões contra dissidentes empreendidos por Hosni Mubarak, no Egito, após o assassinato de Anwar Sadat, em 1981.

“O conhecimento das atrocidades cria obrigações legais em casos extremos e obrigações morais em todos os casos”, disse John Sifton, analista da Human Rights Watch, ONG de defesa dos direitos humanos. Sifton disse que os documentos da CIA e do BND justificam a reavaliação das respostas desses países às crises globais.

Um diplomata sul-americano de alto escalão disse que a reação entre os países que foram alvo da Cypto foi de “surpresa e espanto”, mas também de resignação com a hipocrisia dos EUA. O diplomata, que falou com a condição de que sua identidade não fosse revelada, disse que seu governo ainda não decidiu se protesta contra as ações expostas nos documentos ou exige mais detalhes sobre o que ocorreu.

Dilema

“A espionagem envolve manipulação e traição. Muitas vezes, envolve pesar os interesses nacionais e o impacto sobre indivíduos. O que você está fazendo no final vale o dano que está causando?”

Rolf Mowatt-Larssen
Ex-Agente da CIA

Para Lembrar

Aliança contra dissidentes 

A Operação Condor foi uma aliança entre ditaduras latinoamericanas, nos anos 70, que reuniu os aparatos repressivos de Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia e Chile. Graças a ela, dissidentes eram monitorados, interrogados e até assassinados graças à colaboração entre os serviços de inteligência dos regimes militares. Entre os casos mais conhecidos da Operação Condor está o assassinato do general da reserva do Exército chileno Carlos Prats e de sua esposa, Sofía Cuthbert, em 30 de setembro de 1974, em Buenos Aires. Eles foram vítimas de um atentado organizado pelo serviço secreto argentino. No Brasil, o episódio mais conhecido foi o “sequestro dos uruguaios”, quando os ativistas de oposição Universindo Rodríguez Díaz, Lilian Celiberti e seus dois filhos foram sequestrados por militares uruguaios em Porto Alegre, em 1978.