Correio Braziliense, n. 20707, 01/02/2020. Mundo, p. 10

Risco de contágio

Rodrigo Craveiro


 

A contagem regressiva foi projetada sobre a fachada de 10 Downing Street, a residência oficial do primeiro-ministro. Na Praça do Parlamento, no coração de Londres, a multidão celebrava o fim de um casamento que durou 47 anos. Às 23h de ontem (20h em Brasília), o Reino Unido abandonava oficialmente a União Europeia (UE), em um processo batizado de Brexit, fazendo valer a vontade popular expressa no referendo de 23 de junho de 2016. Na capital, moradores gritavam “Liberdade!”, enquanto a tristeza tomava conta de alguns.

Em discurso gravado à nação, uma hora antes, o premiê Boris Johnson adaptou frase do antecessor Winston Churchill, que governou a nação por duas vezes (1940-1945 e 1951-1955).  “Este não é um fim, mas um começo. Este é o momento em que a aurora se abre, e a cortina sobe, em um novo ato em nosso grande drama nacional”, declarou. “Nós redescobriremos músculos que não usamos por décadas, o poder do pensamento e da ação independentes. (…) Uma Grã-Bretanha que é simultaneamente uma grande potência europeia e verdadeiramente global em nosso alcance e em nossas ambições.”

Ao abandonar o bloco continental, o Reino Unido deu um salto no escuro em busca de autonomia e pode fomentar anseios independentistas. “Este é o alvorecer de uma nova era, na qual não mais aceitaremos que nossas chances da vida deveriam depender de qual parte do país crescemos. Este é o momento em que começamos a nos unir e a subir de nível”, comentou Johnson, em um provável recado aos escoceses. Ele expressou o desejo de “uma nova era de cooperação cordial” com a União Europeia. “Nós recuperamos as ferramentas do autogoverno. É hora de usá-las para liberar todo o potencial deste país brilhante e aprimorar a vida em todos os cantos do nosso Reino Unido”, comentou.

Rob Dover, professor de inteligência e segurança nacional pela Universidade de Leicester (Reino Unido), admitiu ao Correio o perigo de o Brexit contagiar o restante da Europa. “Se você escutar as narrativas de políticos eurocéticos em todo o continente, eles adotam narrativas similares sobre serem dominados pela União Europeia, em uma espécie de vassalagem; sobre serem a voz do cidadão comum; ou sobre a urgência de retomarem o controle sobre a nação. De fato, as narrativas são tão similares que parecem coordenadas, ou mesmo cópias umas das outras”, afirmou. “Para algumas nações, como Polônia, Itália e Grécia, a adesão à UE pode se tornar enganosa ou duvidosa”, acrescentou. No âmbito do Reino Unido, Dover crê que a Irlanda do Norte se tornará parte de uma Irlanda unificada na próxima década. Ele aposta na autonomia da Escócia e ressalta a narrativa de que os escoceses votaram pela permânencia no reino para preservarem a participação na UE. “Fora do bloco, eles votarão pela independência para forçarem uma reanexação.”

Diretor do Centro para Política e Governo Britânicos e do Departamento de História e Política do King’s College London, Andrew Blick advertiu que, caso o Brexit reverta benefícios para o Reino Unido, a Itália, outro país-membro da União Europeia, poderia realizar um referendo separatista. Mas o divórcio entre Londres e Bruxelas deve ressoar com mais força na Escócia. “O governo nacionalista escocês utiliza o Brexit como uma base para revigorar o movimento independentista, sob o argumento de que a Escócia se opôs à separação”, explicou.

A preocupação quanto ao Brexit inspirar outros povos é compartilhada por Anthony Glees, professor emérito da Universidade de Buckingham (Reino Unido). Segundo ele, simpatizantes do divórcio, como Nigel Farage, líder do Partido Brexit, e o deputado conservador Steve Baker, têm abertamente declarado que desejam ver a União Europeia destruída. “Caso o Brexit se revele um sucesso estrondoso, isso poderia ser contagioso. Ele representa o triunfo do nacionalismo inglês e o otimismo ante o modernismo e a integração. Há um punhado de nacionalistas na Europa. Em certo sentido, o Brexit é sobre o nacionalismo inglês, mas também sobre o nacionalismo escocês e irlandês”, avaliou ao Correio.

Consequências

Os impactos do Brexit à economia e à política do Reino Unido são tão incertos quanto o cenário financeiro do país. A moeda britânica perdeu 18% de seu valor, e o país faz empréstimos de até 48 bilhões de libras esterlinas (4% do Produto Interno Bruto) para financiar um programa de renovação econômica. “A dúvida é se os credores poderão devolver essas quantias, em caso de estagnação. A dívida total do Reino Unido soma 8 trilhões de libras esterlinas, ou 86% do PIB. Em outras palavras, o Brexit é uma grande aposta. Os economistas preveem que, ao longo da década, as políticas de Johnson levarão a um declínio de 7% no crescimento aguardado. Estaremos 7% mais pobres do que se estivéssemos na UE”, disse Glees.

Ele alerta que, nos setores da produção de bens industriais e de agroalimentos, o Reino Unido dará um passo gigantesco para trás, de mais de 60 anos. “O sonho do Brexit é de o país se tornar uma espécie de Cingapura ou Taiwan às margens do Rio Tâmisa, com baixos impostos, alta produtividade e serviços orientados”, disse Glees.

Frase

"Este não é um fim, mas um começo. Este é o momento em que a aurora se abre, e a cortina sobe em um novo ato em nosso grande drama nacional”

Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido

Pontos de vista

Por Anthony Glees

Fim de um projeto de paz

“Depois de três anos de divórcio com um parceiro por 46 anos — o qual testemunhou a prosperidade britânica dobrar, uma nova vida ser injetada na indútria no Reino Unido e o apoio ao suprimento alimentar —, vimos hoje (ontem) o funeral desse casamento. Para alguns, é fonte de grande júbilo, uma chance para dançar sobre o túmulo de nossa adesão à União Europeia. Para outros, é motivo de grande tristeza, o fim de uma parceria, uma luz que se apaga. A maioria do povo britânico nunca compreendeu que o projeto europeu era um projeto de paz entre nações que estiveram em guerra entre 1870 e 1945, cujos blocos de construção eram a economia. Os simpatizantes do Brexit apenas queriam não ser parte desse projeto, eles não se importam se a construção inteira desmoronar. Depois do funeral, a vida continuará e novos começos surgirão. Se o Brexit não for o sucesso que os simpatizantes desejam, eles terão apenas a si mesmos para culparem.”

Professor emérito da Universidade de Buckingham (Reino Unido)

Por Rob Dover

Mecanismos de mitigação

“Há mecanismos claros para evitar maus resultados do Brexit para o Reino Unido. Estão agrupados sob o que ficou conhecido como ‘Brexit suave’, que descreve a retenção de liberdade de movimento, a paridade regulamentar, uma forma de mercado único e de união aduaneira. Essas mitigações ainda são possíveis se o primeiro-ministro Boris Johnson fizer escolhas pragmáticas (e ele é pragmático, no fundo). Mas o tom político e a atmosfera do Partido Conservador indicam que ele enfrentaria rebeliões da bancada parlamentar governista se escolher o pragmatismo em alguns desses pontos. Durante o restante de 2020, parece mais provável que o coronavírus tenha impacto econômico maior do que o Brexit, a menos que fique muito claro que não haverá acordo comercial com a UE. Nesse ponto, poderia haver um desinvestimento considerável do Reino Unido.”

Professor de inteligência e segurança nacional cpela Universidade de Leicester (Reino Unido)

Por Andrew Blick

Impacto a longo prazo

“O impacto econômico total do Brexit não será imediato. Será preciso esperar o fim do período de transição. Podemos, no entanto, ver sinal de investimentos serem dirigidos a outros locais além do Reino Unido; e a retirada gradual de negócios. Talvez não grandes mudanças — embora isso dependa parcialmente dos planos fiscais do governo e do impacto que eles têm sobre a confiança de mercado. Na política, o debate terá mudado decisivamente de ‘Deveríamos abandonar a União Europeia e deveria haver outro referendo?’ para ‘Qual abordagem deveríamos tomar no ambiente pós-Brexit? Até quando deveríamos permanecer alinhados à UE?’ Se o Reino Unido puder negociar um acordo de livre comércio com a União Europeia no fim do ano, poderia reduzir danos possíveis, dependendo do conteúdo do acordo. Mas se o Reino Unido também negocia um acordo com os EUA, isso pode exigir que o país se desincompatibilize do quadro regulatrório da UE.”

Diretor do Centro para Política e Governo Britânicos e do Departamento de História e Política do King’s College London

Dia histórico

O último descerramento

O momento solene foi registrado pela imprensa internacional. Na noite de ontem, funcionários do Parlamento Europeu, em Bruxelas, retiraram pela última vez a bandeira do Reino Unido (acima), que tremulava ao lado do estandarte da União Europeia (UE). A bandeira britânica foi cuidadosamente dobrada por dois homens, enquanto jornalistas e curiosos apontavam seus celulares e suas câmeras. Vários eurodeputados britânicos do Partido do Brexit deixaram o prédio em uma cuidadosa encenação, ao som de gaita de fole (abaixo).

Novos parlamentares

Ao todo, 73 eurodeputados britânicos deixaram seus assentos no Parlamento Europeu, que serão ocupados por 27 novos deputados pertencentes a 14 outros países do bloco. As outras 46 vagas deverão ser preenchidas em ampliações futuras. Espanha e França ganham cinco eurodeputados, cada, seguidas por Itália e Holanda com três, Irlanda com dois e nove outros países, com um. O Parlamento Europeu passa assim de 751 para 705 deputados, e os novos serão apresentados oficialmente à plenária em 10 de fevereiro.

Apreensão na Escócia

Melancolia e tristeza predominavam ontem, em Edimburgo, horas antes da saída oficial do Reino Unido da União Europeia, às 20h (em Brasília). Manifestantes escoceses participaram de uma caminhada à luz de velas. Os ativistas levaram bandeiras da Escócia e cartazes alusivos à independência do país do Reino Unido. A primeira-ministra escocesa, Nicola Sturgeon, prometeu fazer o possível para conseguir um novo referendo sobre a autonomia, apesar da intransigência demonstrada por Londres.

Declaração de amor

Nos paredões rochosos de Ramsgate, no sul da Inglaterra, os adeptos da permanência do Reino Unido na União Europeia encontraram um modo original de protestar e de demonstrar o seu amor pelo bloco continental. Eles projetaram a mensagem “Nós ainda amamos a União Europeia”, em que o coração é a bandeira britânica.