O Globo, n. 31555, 29/12/2019. País, p. 6-7

Por que a pauta conservadora travou no Congresso

Natália Portinari
Isabella Macedo


Setores conservadores da sociedade, que ajudaram a eleger o presidente Jair Bolsonaro, defendem alterações legislativas na área de costumes, como a restrição do aborto no Brasil e leis que controlem o conteúdo do que é lecionado nas salas de aula. Essa agenda, porém, não avançou em 2019, pois tanto o governo quanto o Congresso elegeram a reforma da Previdência como a prioridade, deixando de lado bandeiras caras ao conservadorismo.

Deputados defensores da pauta conservadora buscam minimizar a derrota, capitalizando avanços fora do Congresso. A bancada evangélica, composta por deputados ligados a igrejas, concentrou esforços em outras áreas, como o Judiciário. Silas Câmara (Republicanos-AM) deu o tom ao dizer em março, quando foi eleito presidente da frente evangélica, que não era o momento para a pauta de costumes no Congresso. Nove meses depois, ele acredita que, ao contrário do que se diz, essa agenda avançou, mesmo que isso não se traduza na elaboração de leis:

— Só funciona para as pessoas (a pauta de costumes) se for lei? Estão fazendo uma avaliação errada sobre a pauta de costumes. Segundo ele, o diálogo do Supremo Tribunal Federal (STF) com a frente evangélica evitou com que fosse pautado o julgamento para debater a descriminalização das drogas em 2019. No julgamento em que a prática de homofobia foi considerada equivalente ao crime de racismo, Câmara enxerga outra vitória: “um acórdão que garante liberdade de culto e de expressão.”

— A Bíblia diz que você paga pelo que faz e o que deixa de fazer. Foi nosso diálogo com o STF que fez com que não fosse pautada a questão das drogas — afirma o deputado.

Proposições legislativas que eram esperadas no início do ano, porém, não foram levadas adiante. A ministra Damares Alves, por exemplo, disse no fim de 2018 que elaboraria uma nova versão do Estatuto do Nascituro, desincentivando mulheres estupradas a abortar. Não foi para frente. Ela apoiou ainda a criação de uma frente parlamentar pelo ensino domiciliar, outro projeto parado mesmo depois de o governo ter enviado um texto ao Congresso.

O fundador do movimento Escola sem Partido, Miguel Nagib, disse no meio do ano que o grupo ia parar suas atividades, diante do trâmite paralisado do projeto de lei no Congresso. A proposição tinha como finalidade proibir “propaganda políticopartidária” na sala de aula.


Aceno fiscal às igrejas

Para o líder eleito do DEM na Câmara, Efraim Filho (PB), a crise interna no PSL, partido do presidente até o fim de 2019, também fez com que a agenda conservadora de costumes não fosse prioridade do Legislativo. No partido, estão alguns de seus defensores mais fervorosos. O Parlamento, então, focou na agenda econômica.

— Acredito que o governo demonstrou que ele delegou ao Parlamento a construção da agenda prioritária do Brasil, e o Parlamento optou por uma agenda econômica — diz Efraim.

O deputado Silas Câmara aponta também ações do Executivo que, para ele, são um avanço da “pauta de costumes”. Uma é a militância do chanceler Ernesto Araújo com países cristãos para defender a liberdade religiosa em países onde evangélicos e católicos são perseguidos por outros grupos. Está agendada para o ano que vem uma viagem de líderes de igrejas brasileiros a países árabes para debater o assunto, diz o líder da bancada.


Neste ano, uma das prioridades da bancada evangélica foi a alteração de regras tributárias para igrejas. O governo Bolsonaro fez duas alterações importantes: acabou com a exigência de que cada templo tivesse um CNPJ próprio (agora, o da sede pode ser usado nas filiais) e aumentou o teto de R$ 1,2 milhão para R$ 4,8 milhões para organizações dispensadas de apresentar declarações trimestrais.

Temas polêmicos na gaveta do Legislativo

Estatuto do Nascituro

A ministra Damares Alves chegou a dizer antes da posse que seria enviado um projeto desincentivando mulheres estupradas a abortar. Ela chegou a citar a medida como “a mais importante” de sua pasta. O governo, porém, não encaminhou a medida e os projetos que tratam do tema no Congresso não saíram do lugar ao longo do ano de 2019. Outras propostas que visavam restringir as hipóteses de aborto legal também não tiveram andamento no Legislativo.

Escola Sem Partido

A proposta ficou parada durante todo o ano e somente às vésperas do recesso o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), recriou uma comissão especial para discutir o projeto, que tem como finalidade proibir “propaganda político-partidária” em sala de aula. O fundador do movimento, Miguel Nagib, disse no meio do ano que o grupo ia parar suas atividades, por falta de andamento da proposta no Congresso.

Ensino domiciliar

O governo desistiu na última hora de mandar por Medida Provisória alteração legislativa para regulamentar a prática que permite aos pais promover em casa a educação de seus filhos, sem necessidade de matriculá-los em escolas. O tema foi enviado por projeto de lei e ficou parado nos escaninhos da Câmara.

Sem base aliada, governo foi obrigado a reeditar propostas.

Em seu primeiro ano como presidente da República, Jair Bolsonaro acumulou repetições de decretos e medidas provisórias. Sem uma base consolidada no Congresso, ele não conquistou apoio suficiente para algumas de suas propostas e teve que reembalar os mesmos temas, refazendo e reenviando medidas para tentar valer o poder de sua caneta. Só para tentar flexibilizar porte e posse de armas, foram nove decretos — que passam a ter validade imediata assim que editados pelo Executivo.

Publicado ainda em janeiro, o primeiro deles acabou revogado meses depois. O ato ampliava a posse de armas, deixava de exigir a comprovação da necessidade da posse e dobrava a validade de licenças. Foi revogado depois de o Senado decidir sustar a medida e para evitar que a Câmara enterrasse o tema de vez.


O segundo decreto durou duas semanas, sendo alterado por um novo ato graças à polêmica gerada em torno da permissão da compra de fuzil. Ainda sob críticas, Bolsonaro assinou mais quatro medidas em junho, fatiando propostas anteriores. Novos decretos foram assinados em agosto e setembro. Um projeto de lei que fazia mudanças no Estatuto do Desarmamento também foi enviado para o Congresso. Da proposta original, pouco restou no que foi aprovado pelos deputados, limitando as flexibilizações a colecionadores, atiradores e caçadores (CACs).

Vai e vem nos ministérios

Bolsonaro insistiu ainda em reeditar medidas provisórias para organizar órgãos federais. As MPs também têm validade imediata, mas precisam ser validadas pelo Congresso em até 120 dias. Ao organizar seu ministério em janeiro, Bolsonaro passou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda (atual Economia) para a pasta da Justiça. O Congresso desfez a mudança em maio.

Nesta mesma MP, a Funai e a atribuição de demarcação de terras indígenas também eram remanejadas, o que também foi rejeitado pelo Congresso. Em junho, porém, uma nova MP transferia novamente a demarcação para a pasta da Agricultura.

Houve reação no Legislativo e no Judiciário. O Presidente do Senado, Davi Alcolumbre, anunciou que devolveria a parte da matéria que tratava das demarcações, pois a Constituição proíbe a reedição de MPs no mesmo ano. No STF, o ministro Luís Roberto Barroso suspendeu a eficácia cinco dias após a edição. Em agosto, a decisão foi referendada com um voto duro do decano da Corte, Celso de Mello:


— O comportamento do atual presidente, revelado na reedição de medida provisória (...) traduz uma clara, inaceitável transgressão à autoridade suprema da Constituição e representa uma inadmissível e perigosa transgressão ao princípio da separação de poderes.

Depois da derrota no STF, Bolsonaro voltou a tentar mudar estruturas de governo por MP ao transferir o Coaf para o Banco Central (BC) e rebatizá-lo como Unidade de Inteligência Financeira (UIF). O Congresso, desta vez, aceitou manter a mudança no destino, mas manteve o nome de Coaf.

Na semana passada, o GLOBO mostrou que Bolsonaro é o presidente que mais teve MPs barradas pelo Congresso no primeiro mandato desde 2003. Entre as 24 MPs cujo prazo já expirou, 50% foram rejeitadas. Esse índice foi menor com Temer (29,5%), Dilma (20%) e Lula (1,8%).

— É um governo que legisla como sempre, mas perde como nunca. Tem sofrido derrotas em coisas que não são comuns à lógica da governabilidade do Brasil — avalia Humberto Dantas, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp).


Após rejeições, excludente de ilicitude vira indulto

Promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro, a isenção de punição para agentes de segurança em conflito —a chamada excludente de ilicitude —foi um exemplo de projeto enviado mais de uma vez ao Congresso.

A medida inicialmente fazia parte do pacote anticrime do ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), apresentado em fevereiro. O grupo de trabalho na Câmara, que fez uma primeira análise do pacote, retirou essa medida em setembro, e a decisão foi mantida nas outras fases de tramitação.

Em novembro, então, o governo enviou um novo texto para tentar emplacar a excludente para militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). A proposta, porém, nem começou a tramitar e já enfrenta rejeição na Câmara.

Diante do risco de ver o projeto empacar no Congresso, o presidente decidiu, então, tentar emplacar medida com o mesmo intuito por meio do decreto de indulto de Natal, editado na semana passada. Bolsonaro decidiu concedero benefício a agentes de segurança e militares em atuação na GLO para o crime de “excesso culposo”, quando a reação foi desproporcional à ameaça. A medida ainda incluiu crimes culposos desde que o agente já tenha cumprido um sexto da pena, e vale neste caso mesmo para atos praticados em dias de folga.

Vai e volta em regras de armas

> 15 de janeiro:

Bolsonaro edita primeiro decreto das armas, ampliando a posse, dispensando a comprovação da necessidade e dobrando a validade de licenças de cinco para dez anos

> 7 de maio:

Novo decreto é editado pelo governo, anulando o primeiro. O ato permitia que proprietários rurais utilizassem armas em toda a área da propriedade, não só na sede, e liberava a compra de um tipo de fuzil de uso exclusivo das forças de segurança

> 21 de maio:


O terceiro decreto de Bolsonaro alterava o que tinha sido publicado duas semanas antes, por conta da controvérsia gerada pela compra de fuzis. O Exército ficou encarregado de elaborar uma lista dos armamentos permitidos

> 18 de junho:

Senado aprova a derrubada do segundo decreto de Bolsonaro. Câmara agenda votação para a semana seguinte

> 25 de junho:

Para evitar novo revés no Congresso, Bolsonaro edita quatro decretos de uma vez, “fatiando” as medidas anteriores. Um deles anulava outro publicado no mesmo dia. STF tira de pauta ações que questionavam decretos anteriores

> 20 de agosto:

Bolsonaro revoga, por meio de outro decreto, a exigência de expressa autorização da instituição para que policiais civis, militares e forças auxiliares portassem arma fora de seus estados de atuação

> 30 de setembro:

Novo decreto faz alterações no ato presidencial de 25 de junho, flexibilizando a posse de armas para uso pessoal para militares e policiais

> 7 de novembro:

Câmara aprova o projeto de lei com regras sobre aquisição, posse e porte de armas, enviado ao Congresso em junho. Proposta foi desidratada pelos deputados e ainda precisa ser analisada pelo Senado