O Estado de S. Paulo, n. 46139, 13/02/2020. Metrópole, p. A18

Papa rejeita a ordenação de casados aprovada pelo Sínodo da Amazônia
Felipe Frazão
João Ker


 

No documento Querida Amazônia, divulgado ontem, o papa Francisco rejeitou qualquer possibilidade de que homens casados venham a ser ordenados padres, mesmo que provisoriamente, para atuar em áreas com falta de sacerdotes. A proposta foi o centro da discussão entre bispos durante o Sínodo da Amazônia, em outubro.

Francisco já havia tornado pública sua opinião, quando destacou a “coragem” do papa Paulo VI ao defender o sistema atual em meio às mudanças dos anos 1960 e 1970 e quando disse ser contrário ao “celibato opcional”. Mas é a primeira vez que esse posicionamento vai para um documento oficial.

Ao falar do papel dos sacerdotes na exortação apostólica, o pontífice destaca que só o padre está “habilitado para presidir à Eucaristia”. “Esta é a sua função específica, principal e não delegável.” O pontífice admitiu a carência e caracterizou como “desigual” a presença de sacerdotes na área, uma das principais queixas das três semanas de debates no Vaticano.

Um bispo austríaco em missão na Amazônia, d. Erwin Kräutler, disse que já havia apresentado o problema ao papa, destacando que comunidades ficam semanas e mesmo meses sem padres. E Francisco havia respondido que qualquer proposta para melhorar deveria vir de baixo, dos bispos locais.

Agora, Francisco devolveu o problema a líderes locais. “Esta premente necessidade ( de padres) leva-me a exortar todos os bispos, especialmente os da América Latina, a promover a oração pelas vocações sacerdotais e a ser mais generosos, levando aqueles que demonstram vocação missionária a optarem pela Amazônia.”

A polêmica sobre a ordenação de casados (viri probati) começou já com a divulgação do instrumento de trabalho do sínodo, em 17 de junho, que pela primeira vez levantou a possibilidade de ampliar os espaços para homens casados e mulheres. O texto chegou a ser apontado como contrário à fé pelos cardeais Walter Brandmüller e Raymond Burke e a ala mais conservadora tratou os autores – e o próprio papa – como hereges.

Na sequência, houve a aprovação da proposta de ordenar homens casados, idôneos e com ligação comprovada com a comunidade. A votação do sínodo de outubro teve 128 votos favoráveis e 41 contrários.

Foi quando aumentou a pressão eclesial contrária, que teve seu auge no mês passado, com um livro assinado conjuntamente pelo papa emérito Bento XVI e pelo cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto e a Disciplina Divina dos Sacramentos. A defesa aberta do celibato clerical por Bento, a poucos dias de Francisco se pronunciar a respeito, causou mal-estar. Na sequência, o papa emérito – que chegou a abrir uma brecha para o debate ao aceitar que padres anglicanos casados viessem para a Igreja Católica – pediu oficialmente para Sarah tirar seu nome da capa do livro.

Na realidade, desde o Concílio Vaticano 2.º, todos os papas em algum momento foram colocados frente ao debate sobre o celibato clerical – e decidiram não modificá-lo. Francisco seguiu a linha de João Paulo II, que o tornou bispo e com o qual está em “total sintonia” sobre o sacerdócio, conforme livro publicado anteontem na Itália, em que fala sobre seu antecessor. O pontífice polonês dizia que o celibato sacerdotal poderia até ser revisto – mas não agora.

Em outro ponto, Francisco ainda desconsiderou a sugestão não oficial de criar um ministério específico de mulheres. “Clericalizar as mulheres diminuiria o grande valor do que elas têm feito na região”, escreveu. Ele também não avançou sobre a possibilidade de criar um “rito amazônico”.

Internacionalização. Nos quatro capítulos do texto, Francisco ainda trabalha temas sociais, culturais e ecológicos. E fala sobre a “internacionalização” da Amazônia. Diz que a medida – que causa temores na gestão Jair Bolsonaro – não é a solução. O pontífice cobra, porém, que os governos não se vendam a “espúrios interesses” locais ou internacionais. Logo em seguida, defende e considera “louvável” a presença e o trabalho desenvolvido por organizações não governamentais (ONGs).

Sem fazer menção específica a nenhum país ou governante, o pontífice ainda se opõe ao avanço da exploração econômica em terras indígenas e reservas florestais. “São injustiça e crime”, afirma. / Felipe Frazão e João Ker, com agências internacionais

Inovação

Trata-se do primeiro texto do Vaticano cujo título original não está em latim, língua oficial. Mesmo as versões em inglês, alemão e francês, por exemplo, trazem Querida Amazônia.

Espiritualidade mais viva como resposta

Análise: Francisco Borba Ribeiro Neto 

O texto aparece na perspectiva socioambiental, defendendo os ecossistemas amazônicos, seu papel para o equilíbrio do planeta, e o respeito às culturas locais, bem como a íntima relação entre espiritual e social. A ordenação de homens casados não aparece no documento. A solução de Francisco para a falta de sacerdotes na região, consoante com sua posição sobre o tema, é uma espiritualidade mais viva, maior atuação dos leigos e colaboração missionária de outras partes da América e do mundo.

O papa também não questiona a soberania dos países amazônicos. Pelo contrário, ataca propostas de internacionalização da região, às quais contrapõe a necessidade de uma atuação responsável dos governos. Contudo, deixa claro apoio à ação de organismos multinacionais e organizações sociais. Segue, claramente, as indicações da doutrina social da Igreja: a solidariedade é sempre a melhor resposta para os problemas, pois respeita a autonomia e a liberdade, mas dá apoio concreto. Governos responsáveis e comunidade internacional solidária não entram em conflito, mas somam os esforços para o bem comum.

Coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

D. Cláudio diz que não desistirá de propostas

Relator-geral do Sínodo da Amazônia, o cardeal d. Cláudio Hummes afirmou ontem que a proposta de ordenação de homens casados em áreas remotas será retomada. “Essa questão deverá ser trabalhada agora com o papa, nas instâncias da Santa Sé. Esse pedido terá que ser elaborado e cumprido.”

Segundo ele, o novo órgão vaticano para a região, um dos frutos do sínodo, servirá também como polo de discussão. Hummes ainda reiterou que o documento final do sínodo “não vai para a estante”. “São perguntas em evolução, temas que não foram resolvidos pelo Santo Padre”, disse o cardeal Michael Cherny, secretário especial do Sínodo, para quem que a proposta “fica sobre a mesa’ e será “amadurecida”.

Em círculos considerados mais progressistas, a exortação publicada ontem foi vista com decepção – muitos esperavam que se abrisse pelo menos uma brecha para que bispos locais permitissem a ordenação de homens casados. Seria algo parecido com o que Francisco fez com a admissão sob regras de divorciados à comunhão da Igreja – na exortação Amoris Laetitia.

“Mas o papa cedeu à pressão”, disse José Manuel Vidal, do site Religião Digital, para quem se corre o risco de clericalizar ainda mais a Igreja. Para Kate McElwee, diretora executiva da Conferência pela Ordenação de Mulheres, o papa “traiu a todas na Amazônia”. Já em círculos conservadores, o silêncio foi o sinal de aprovação.

Futuro. Para vaticanistas como o italiano Marco Politi, há outra porta possível, levantada ontem para a questão: um concílio. Mas que provavelmente teria o mesmo resultado. “Se houvesse um sínodo mundial de bispos, dificilmente a proposta teria maioria de dois terços.”

A palavra “sínodo” vem de duas palavras gregas: “syn”, que significa “juntos”, e “hodos”, que significa “estrada ou caminho”. Os encontros têm caráter consultivo e já ocorreram quatro no atual papado. O próximo, aliás, deve discutir diretamente a questão da sinodalidade, ou seja, os limites e diretrizes que devem orientar decisões colegiadas na Igreja Católica. / F.F., com agências