O Globo, n. 31553, 27/12/2019. País, p. 4

País registrou 5 armas por hora em 2019

Juliana Castro
Marlen Couto
Natália Portinari


Sob o governo de Jair Bolsonaro, o Brasil bateu recorde de novas armas de fogo registradas em um só ano: foram 44.181 entre janeiro e novembro de 2019, alta de 24% em relação a todo o ano passado. É o maior número de autorizações para posse — isto é, para ter uma arma em casa — concedidas pela Polícia Federal desde 2010, segundo estatísticas inéditas obtidas pelo GLOBO com base na Lei de Acesso à Informação (LAI). O levantamento diz respeito apenas a registros para pessoas físicas, excluindo, por exemplo, aquisições de órgãos públicos e empresas de segurança e também dos CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), cujo registro é feito pelo Exército.

Mesmo sem os dados referentes a dezembro, o país vendeu cinco armas por hora a cidadãos comuns em 2019 — maior média do que em todos os outros períodos analisados. Ano a ano, os registros de armas vêm aumentando. Em 2018, esse número era de 35.758, o maior até então — um aumento de 8% em relação ao ano anterior. A média era de quatro armamentos vendidos por hora.

Em 2019, os maiores crescimentos percentuais de aquisições de armas em relação ao ano anterior ocorreram em Tocantins (645%), Mato Grosso do Sul (241%) e Mato Grosso (219%). Os números deste ano são três vezes maiores do que os de 2010, quando foram catalogados 12 mil novos armamentos.

Facilitar o acesso da população a revólveres e pistolas foi uma promessa de campanha do presidente. Desde que assumiu, Bolsonaro editou oito decretos sobre porte e posse de armas. Quatro foram revogados após serem contestados por áreas técnicas do Congresso e pelo Ministério Público Federal, que os consideraram inconstitucionais.

Autorizações para porte

Pesquisadores ressaltam que um dos principais riscos do aumento de armas nas mãos de cidadãos comuns é o roubo dos equipamentos, que acabam usados por criminosos.

— Os impactos são graves. A gente tem um consenso nas pesquisas de que a arma legal, a tal da arma do cidadão que compra para se defender, é uma arma que migra para o crime. Não é verdade que vai ficar guardada em casa, ela vai ser roubada. Quando fazemos rastreamento de armas usadas no crime, até cerca de 40% delas têm essa origem. É a arma que o seu João comprou e foi roubada — diz Isabel Figueiredo, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Houve também aumento no número de porte de armas — a autorização para andar armado —, sob a justificativa do uso para defesa pessoal, em relação aos anos anteriores. Na comparação com 2018, o crescimento foi de 4% (de 2.961 para 3.090), também sem considerar dados de dezembro deste ano. Os maiores aumentos percentuais ocorreram em Paraíba (246%), Maranhão (200%) e Sergipe (156%).

Para Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, o fato de Bol sonar o não ter conseguido facilitar por decreto regras para o porte de armas — o presidente recuou da ampliação para diversas categorias profissionais e decidiu enviar ao Congresso um projeto de lei que contempla o tema — fez com que o número de autorizações para andar armado não subisse ainda mais. Por outro lado, Langeani destaca que houve alta expressiva de armas para posse, mesmo coma dificuldade dese entender que regra está valendo, em meio às idas e vindas dos decretos presidenciais.

— Bolsonaro não conseguiu mudar na canetada o porte, masa venda de armas cresceu. Antes a regra (para posse) era conhecida, vigorou por 15 anos. ComBol sonar o, tivemos três diferentes, em janeiro, maio e outra em junho. Só em agosto o Exército regulou os calibres permitidos para o cidadão comum. Se mesmo coma confusão toda para saber que regra está valendo ou não, houve crescimento expressivo, imagina quando isso estiver estabilizado — explica.

O pesquisador ressalta outra mudança importante feita pelo governo. O registro de posse passou a valer por dez anos e não mais por cinco anos.

— É uma outra flexibilização que é perigosa. Você só checa a aptidão para ter uma arma dez anos depois. Todas essas pessoas só vão renovar e precisar fazer os testes de novo em 2029. Além disso, há cinco ações pendentes de julgamento no Supremo, que pode derrubar as regras que estão valendo. A gente não sabe como ficará a questão para quem já conseguiu a posse de arma esse ano. Fica uma insegurança jurídica — diz Langeani.

O governo também quadruplicou potência das armas de uso permitido a cidadãos comuns, desde que tenham calibre permito pelo Exército. Retirou ainda a necessidade de apresentação de atestado de antecedentes criminais na renovação, o que entra em conflito com decretos anteriores, e facilitou a posse de arma particular para militares e policiais, que ficaram dispensados de apresentar requisitos como atestado de aptidão psicológica.

Para colecionadores, Bolsonaro ‘não mudou nada’

Entusiastas e colecionadores de armas veem o governo de Jair Bolsonaro como aliado, mas criticam sua estratégia. A série de decretos e projetos de lei do presidente atraiu mais repercussão negativa do que seria necessário, segundo eles, e a promessa de quebrar o monopólio do mercado ainda está distante da realidade. Eles dizem também que as mudanças não foram capazes de reduzira burocracia na concessão de registros.

— Nesse entra e sai de decretos, ficou todo mundo meio atrapalhado e oque teria que ter mudado, não mudou nada —diz Marcelo Resende, presidente da Associação CAC Brasil, em referência ao vaivém de decretos presidenciais ao longo do ano.

O governo elaborou um projeto de lei sobre compra e registro de armas para CACs (caçadores, atiradores profissionais e colecionadores) que não contemplava a maior demanda da categoria: o porte. Os esportistas se queixam de assaltos próximos a clubes de tiro e das dificuldades em transportar a arma.

Em vez de oferecer porte para todos os CACs, o projeto dava ao próprio presidente o poder de determinar quais categorias poderiam tê-lo. Esse ponto foi retirado de imediato pelos deputados. O texto foi desidratado e passou com uma previsão de que os CACs podem ter porte de armas após cinco anos de atividade. Estendeu também o primeiro registro de armas dos CACs de cinco para dez anos. O Senado ainda precisa apreciar a proposta.

— Não vemos com bons olhos o fato de o registro ser estendido para dez anos. Hoje, uma pessoa que quer ter uma arma pode usar como subterfúgio a nossa atividade — afirma Resende, completando: — Muita gente virou CAC com a expectativa de que terá o porte de arma, e agora não terá. Ele (Bolsonaro) resolveu tudo numa canetada, de forma errada. O certo era ter feito um projeto para CACs e outro para o civil.

Na venda de munições, houve avanço na flexibilização. Civis agora têm acesso a calibres que eram de uso restrito, como o 9 mm. Já os CACs passaram a precisar de autorização para comprar munição de uso permitido, antes necessária só para os calibres de uso restrito.

O Congresso Nacional ainda aprovou neste ano a extensão da posse de arma para toda a propriedade na zona rural, projeto endossado por Bolsonaro.

— A burocracia continua a mesma para quem vai comprar uma arma de fogo —diz o deputado Alexandre Leite (DEM-SP), que relatou o projeto do governo federal para CACs. — Ainda não houve uma flexibilização, nem deverá haver. O processo de aquisição deve ser e continuará rigoroso, pois abre a possibilidade de compra de mais armas.

Outra demanda não atendida é a diversificação de produtos. Hoje, há poucas armas e munições importadas disponíveis para civis e colecionadores. Em um dos decretos de junho, Bolsonaro liberou a importação de armas mesmo quando há semelhante no país, o que antes era proibido. Aumentou a importação de armas, mas a preços pouco acessíveis.

Parte do problema é que, para trazer as empresas estrangeiras, há outros entraves, como a tributação e o interesse em abrir uma fábrica no Brasil.

Para o deputado Capitão Augusto (PL-SP), líder da Frente Parlamentar da Segurança Pública, o ano de 2019 foi bom para a “bancada da bala”. Ele disse acreditar que o que ainda existe de burocracia pode ser resolvida internamente pelo próprio Executivo, e “o que tinha que aprovar de lei, já aprovamos”.