Correio Braziliense, n. 20662, 18/12/2019. Mundo, p. 13

Abusos sexuais sem sigilo


Em mais um passo na batalha contra a prática de abusos sexuais na Igreja Católica, sobretudo pedofilia, o papa Francisco assinou ontem, dia de seu aniversário de 83 anos, instruções que acabam com o chamado “segredo pontifício”, imposto às investigações que envolviam os religiosos e que, na avaliação dos críticos, tinha, na prática, o papel de acobertar os casos. O pontífice também decidiu que a posse de material de pornografia envolvendo adolescentes com até 18 anos passa a ser considerada crime grave — o limite anterior de idade era de 14 anos. Ambas as medidas começam a valer em 1º de janeiro e buscam facilitar o compartilhamento de denúncias com a Justiça comum.

Desde a entronização, em março de 2013, o papa fez do combate à violência sexual cometida por integrantes da Igreja uma das prioridades do pontificado. Há décadas, escândalos dessa natureza, sobretudo crimes de pedofilia praticados por religiosos, assolam a Santa Sé, muitas vezes, acobertados pela hierarquia católica.

As instruções do papa são concisas e destacam que “não são cobertos pelo segredo pontifício denúncias, julgamentos e decisões sobre crimes” mencionados por dois artigos legais de dois documentos eclesiásticos, que cobrem praticamente todos os casos de agressão sexual.

De acordo com o arcebispo Juan Ignácio Arrieta, membro do Conselho Pontifício de Textos Legislativos, em comunicado divulgado pelo Vaticano, as medidas decretadas pelo papa visam “especificar o grau de confidencialidade com o qual é preciso tratar as informações e as denúncias sobre os abusos sexuais”.

Mais direto, Giuseppe Dalla Torre, ex-presidente do Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano, afirma que “Francisco abole o segredo papal para casos de abuso sexual”, segundo a nota.

“Em essência, as razões que levaram o legislador eclesiástico a introduzir, entre os assuntos sujeitos ao sigilo pontifício, os crimes mais graves (como agressão sexual) cederam diante de valores considerados hoje mais elevados e dignos de proteção especial, como a primazia do ser humano ferido”, assinalou Dalla Torre.

A decisão de Francisco vem a público no mesmo dia em que o pontífice aceitou a demissão, oficialmente, por “limite de idade”, do embaixador do Vaticano na França, monsenhor Luigi Ventura, investigado por agressões sexuais. E no mesmo momento em que, na França, o cardeal Philippe Barbarin é julgado por não ter denunciado os abusos de um padre de sua diocese.

Confidencialidade

Mesmo levantando o segredo pontifício, o papa argentino impôs um mínimo de atenção, exigindo que “as informações” desses casos sejam “tratadas de maneira a garantir a segurança, a integridade e a confidencialidade (...) a fim de proteger a boa reputação, imagem e privacidade de todos os envolvidos”. Francisco ressaltou que isso não significa censura.

“Nenhuma obrigação de silêncio em relação aos fatos em questão pode ser imposta àqueles que os denunciam, à pessoa que afirma ser a vítima e às testemunhas”, assinalou. No entanto, o pontífice afirmou que há um limite impossível de ser excedido: o sigilo da confissão permanece absoluto, o que exclui, portanto, uma denúncia de fatos relatados por um fiel no confessionário.

Na interpretação do jornalista italiano Andrea Tornielli, diretor editorial do dicastério da Comunicação do Vaticano, a decisão de Francisco significa concretamente que “as denúncias, as testemunhos e os documentos dos julgamentos” relativos a agressões sexuais e que até agora eram objeto de sigilo papal “podem agora ser entregues aos magistrados da Justiça Civil dos vários países”. “Um sinal de abertura, disponibilidade, transparência, colaboração com as autoridades civis”, resumiu Tornielli, descrevendo a medida como histórica.

Frase

“Nenhuma obrigação de silêncio em relação aos fatos em questão pode ser imposta àqueles que os denunciam, à pessoa que afirma ser a vítima e às testemunhas”

Papa Francisco