O Globo, n. 31552, 26/12/2019. País, p. 6

Tribunais do Júri absolvem seis em cada dez policiais
Vinícius Sassine
André de Souza
Bernardo Mello


Os tribunais do júri brasileiros absolvem PMs suspeitos de homicídios numa proporção bem superior a de casos envolvendo outros acusados de assassinatos. Dados inéditos obtidos pelo GLOBO mostram que seis em cada dez PMs levados a julgamento popular são absolvidos.

Os primeiros dados estatísticos sobre os júris envolvendo PMs no banco dos réus só começaram a surgir em 2017, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu o chamado mês nacional do júri, organizado em novembro, como forma de diminuir a fila de processos. Já nos dois anos seguintes, o conselho orientou os tribunais nos estados a darem preferência a julgamentos de cinco categorias: réus presos, feminicídios, assassinatos de crianças e adolescentes, mortes em bares e boates, e crimes praticados por PMs no exercício ou não de suas funções.

Em 2018, 57,8% dos PMs julgados foram absolvidos pelo júri e 42,2%, condenados. Foi a maior proporção de absolvições entre os grupos categorizados pelo CNJ: 13% dos acusados de feminicídio foram absolvidos; entre acusados de assassinatos de crianças e adolescentes, 27%; crimes ocorridos em bares e casas noturnas, 31%; réus presos, 19,6%.

No mutirão feito no mês passado, a proporção foi ainda maior. Foram absolvidos 65,6% dos PMs julgados. No Rio, 16 PMs foram absolvidos e três foram condenados.

Promotores e juízes ouvidos pelo GLOBO dizem que a maioria dos casos não se refere a confronto em serviço. Os casos levados a júri são principalmente execuções posteriores de acusados, chacinas, extermínios, uso excessivo da força e vinganças.

Casos não investigados

A maioria dos casos envolvendo PMs, porém, não é investiada, segundo fontes ouvidas pela reportagem. Dos casos apurados, boa parte também não chega a julgamento. Os processos são arquivados pelas próprias corregedorias das PMs, por decisões do Ministério Público (MP) de não levar acusações adiante ou por determinação de juízes.

A reportagem pediu aos MPs nas 27 unidades da federação dados sobre arquivamentos de casos envolvendo PMs. Nenhum respondeu. O Conselho Nacional do Ministério público (CNMP) disse não ter as informações.

— Há dois fatores possíveis para esse índice alto de absolvição: boa parte da população legitima ações violentas de policiais, e há um temor de represália, demostrar acara, uma vez que os julgamentos são públicos e uma condenação pode trazer riscosa os jurados — afirma o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti, que coordena um grupo do CNJ responsável por aperfeiçoar o funcionamento dos tribunais do júri.

— No júri, na dúvida, o jurado deve absolver. Em casos de PMs, é mais difícil saber o que aconteceu — diz o juiz Fabrício Lunardi, integrante do grupo.

— Há uma resistência muito grande do júri em condenar PMs, não necessariamente por falta de provas. O policial pode não ter matado em serviço, ma sesta vaali“lidando coma bandidagem” segundo esse imaginário— afirma o promotor do júri em São Paulo Ricardo Silvares.

O governo quer ampliar as hipóteses de legítima defesa na atividade policial, por meio da excludente de ilicitude. O tema foi retirado do pacote anticrime e encaminhado novamente ao Congresso por meio de projeto de lei próprio.

Mesmo com maior taxa de absolvição, agentes de segurança como policiais e militares condenados por crimes culposos (sem intenção) foram beneficiados pelo indulto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro na última segunda-feira. A regra só vale para condenados por atos praticados “no exercício da função ou em decorrência dela ”, eque tenham cumprido um sexto da pena.

O esforço para manter uma base fardada

Depois de ser eleito com forte apelo à segurança pública e passar por cobranças do eleitorado policial em 2019, o presidente Jair Bolsonaro fez, no apagar das luzes deste ano, seus acenos mais significativos à categoria. O indulto natalino a policiais presos por crimes culposos — condição incomum — teve mais jeito de jogo de cena. Já o vetos na sanção do pacote anticrime são sinais de um presidente disposto a descobrir uma solução capaz de acalentar sua base de apoio.

Ao alegar “insegurança jurídica” e vetar o aumento de penas em homicídios cometidos com armas de fogo de uso restrito — usadas por agentes de segurança —, Bolsonaro citou a preocupação de que policiais fossem “severamente processados ou condenados criminalmente por utilizarem suas armas”. A medida puniria com maior severidade, por exemplo, as mortes causadas por fuzis — fossem eles usados por policiais ou traficantes.

Ao longo do ano, representantes de policiais cobraram ação do governo federal e do Congresso em pautas como a PEC 300 —parada há nove anos na Câmara —, que poderia elevar em até 45% o piso salarial de policiais e bombeiros militares de alguns estados, além da redução de impostos sobre armas.

A reforma da Previdência também gerou queixas de policiais civis e militares, que não receberam um plano específico. Os PMs e bombeiros acabaram incluídos na Previdência das Forças Armadas, que prevê 35 anos de tempo de serviço, até dez a mais que o previsto atualmente em alguns estados, como Minas Gerais. A Polícia Civil terá suas regras ditadas na PEC paralela da Previdência de estados e municípios, enviada à Câmara após ser aprovada em dois turnos no Senado.

— Houve um tratamento desigual aos iguais. E o descontentamento da classe policial pode se refletir em falta de apoio aos governos —declarou o deputado Felício Laterça (PSL-RJ), ex-delegado da PF.

Não apenas Bolsonaro luta para pacificar os ânimos do eleitorado policial. Em São Paulo, João Doria acenou com um (tímido) aumento de 5% para a PM. Limitado pela recuperação fiscal do Rio, Wilson Witzel buscou uma rota de fuga na reativação dos cursos de promoção. A mudança de patente se traduz em maior soldo.