Correio Braziliense, n. 20661, 17/12/2019. Política, p. 2

"Congresso não pode rever 2ª instância"
Renato Souza
Rodolfo Costa


O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que o Congresso Nacional não pode mudar o entendimento da Corte sobre a prisão em segundo grau de Justiça. De acordo com o ministro, a liberdade é garantia prevista em cláusula pétrea, que não pode ser alterada nem mesmo por meio de emendas à Constituição. As declarações do magistrado ocorrem ao mesmo tempo em que a Câmara avança na tramitação de uma proposta da emenda que pretende alterar o sistema de Justiça para permitir o cumprimento da pena a partir de condenação em segunda instância.

Ontem, foram empossados o presidente e o vice-presidente de uma comissão especial criada na Câmara para tratar do assunto. No Senado, um projeto de lei com o mesmo intuito, de autorizar o encarceramento em segundo grau, tem avançado nas últimas semanas. Ao Correio, Marco Aurélio declarou que não existe a possibilidade de que o entendimento do STF seja alterado pelo Legislativo. “O artigo 60 da Constituição obstaculiza a votação de proposta de emenda que atente contra garantia individual. E essa é uma das maiores garantias”, disse o ministro.

“Por meio de PEC não poderia, pois é cláusula pétrea”, completou o magistrado. Em 7 de novembro, o STF decidiu vedar, por seis votos a cinco, a possibilidade da execução da prisão após condenação em segunda instância de Justiça. A Corte revisou o entendimento que vinha mantendo desde 2016, o que gerou impacto imediato em casos investigados pela Operação Lava-Jato.

Entre os beneficiados com a manifestação do tribunal está o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que foi liberado no dia seguinte à decisão. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 4.895 detentos, em todo o país, foram beneficiados.

As declarações do ministro repercutiram no Legislativo. O deputado federal Marcelo Ramos (PL-AM), presidente da comissão especial que analisa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 199/2019, que propõe a viabilidade da prisão em segunda instância, saiu em defesa do texto discutido na Câmara e sugeriu que o magistrado estaria equivocado, ao ter confundido a redação com o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 166/2018, que também versa sobre o assunto.

O PLS nº 66/2018 altera o Código de Processo Penal (CPP) e estabelece que a prisão poderá ocorrer a partir da condenação em segundo grau, em instância única ou recursal. Para Ramos, o texto do Senado é inconstitucional, não o da Câmara. “Olha lá, eu acho que a gente não pode confundir as duas coisas. A palavra do ministro Marco Aurélio e de todos os ministros é absolutamente perfeita no sentido de que o Congresso não pode modificar a regra da presunção de inocência, por isso a proposta do Senado é absolutamente inconstitucional”, sustentou.

A PEC 199, no entanto, busca preservar o duplo grau de jurisdição alterando o momento do trânsito em julgado, defende Ramos. “Estamos garantindo a presunção de inocência, posto que, na PEC 199 só pode haver prisão após o trânsito em julgado, sendo que o trânsito em julgado, que, hoje, acontece no Supremo Tribunal Federal, passará a acontecer na segunda instância. Não há nenhum questionamento de natureza constitucional e tenho certeza de que o comentário do ministro Marco Aurélio foi relacionado muito mais ao projeto de lei que tramita no Senado do que à PEC que tramita aqui na Câmara”, afirmou. O Grupo de Trabalho composto por coordenadores escolhidos pelos líderes partidários se reúne hoje para definir o calendário da semana em torno da proposição.

Ação revisional

A PEC protocolada na Câmara prevê que os atuais recursos extraordinário e especial passem a ser ações revisionais. De acordo com o texto, essas ações seriam apresentadas após o “trâmite em julgado”, ou seja, após o processo ter sido encerrado. Atualmente, após condenação em segunda instância, o réu pode recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de recurso especial, alegando violação da legislação infraconstitucional (Código Penal, Código de Processo Penal) durante a ação penal.

Caso se entenda que a Constituição tenha sido ferida pelos julgadores ou pelo Ministério Público, é possível apresentar recurso extraordinário no Supremo. Essas duas medidas fazem parte da ação penal, e o processo não termina até que sejam analisadas, proibindo que a prisão para cumprimento da pena seja efetuada antes disso. O jurista Adib Abdouni, criminalista e constitucionalista, afirma que a intenção dos parlamentares encontra barreiras na Constituição. “A tentativa de alterar o tipo de recurso representa a intenção de restringir o acesso à defesa. Provavelmente haverá ações de inconstitucionalidade contra a PEC, pois se está obstruindo a possibilidade de o STJ e de o STF revisarem a violação da lei. A Constituição é clara quanto à separação dos Poderes. O Legislativo não pode interferir nas competências do Judiciário”, disse.