O Globo, n. 31552, 26/12/2019. Sociedade, p. 27

Nas federais
Manoel Ventura
Constança Tatsch
Rafael Garcia


Uma medida provisória (MP) publicada anteontem pelo presidente Jair Bolso na roal ter ao processo de reitores das instituições de ensino federal. Dentre as mudanças, o texto torna obrigatória a realização de eleições entre a comunidade acadêmica para a elaboração de listas tríplices e reduz o peso dos votos de alunos e funcionários, aumentando o dos professores na decisão.

Segundo nota da Presidência da República, a intenção do texto, que vale também para institutos e o Colégio Pedro II, é formalizara necessidade de eleição, porque hoje existiria apenas uma “previsão, genérica, no sentido da possibilidade” além de um “costume de realizar eleições dos modos mais variáveis possíveis”.

Por se tratar de uma medida provisória, as regras já estão em vigor, mas precisam ainda ser votadas pelo Congresso Nacional. Uma MP tem validade de 120 dias, porém, como o Congresso está de recesso, esse prazo só passará a ser contado a partir de fevereiro, quando será instalada uma comissão mista de deputados e senadores para analisar o texto, que poderá ser alterado ou rejeitado totalmente. Depois desta análise, ela será votada nos plenários da Câmara e Senado.

A Presidência da República justifica a MP sob o argumento de que “a falta de obrigatoriedade de eleições formais parece estar trazendo problemas, devido a realização de consultas informais que não seguem parâmetros claros e, em alguns casos, parecem dirigidas a manter no poder grupo determinado”. Especialistas em educação e membros da comunidade acadêmica dizem que a medida fere a autonomia universitária (leia mais abaixo).

O novo texto estabelece ainda que o voto dos professores terá um peso de 70% nas eleições, e o dos funcionários e alunos terão 15%, cada um. A eleição escolherá uma lista tríplice entre os mais votados, e o Presidente da República terá a obrigação de nomear o reitor entre um dos nomes indicados.

Quebra de tradição

O processo até então em vigor estabelecia que a escolha de reitores fosse decidida em etapas: professores titulares se organizam em chapas e passam por uma consulta eleitoral ampla entre a comunidade acadêmica, em que alunos e técnicos também votam. Coma prerrogativa da autonomia universitária, cada instituição determinava o peso de cada voto. Na UFRJ, por exemplo, os três setores são paritários.

Na sequência, um colégio eleitoral, composto de representantes da instituição (este, sim, com peso maior do corpo docente), elege uma lista tríplice, geralmente encabeçada pelo vencedor da consulta ampla. A lista é en caminhada ao Ministério da Educação (MEC), e o presidente tema prerrogativa constitucional de indicar qualquer um dos três nomes. A nomeação do primeiro colocado vinha sendo seguida à risca desde 2003, mas Bolsonaro quebrou a tradição neste ano.

Em junho, o presidente confirmou Ricardo Silva Cardoso comorei torda Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), que nem sequer havia se submetido à consulta à comunidade acadêmica, oferecendo sua candidatura diretamente no colégio eleitoral, onde foi eleito com 65 votos, gerando uma crise na universidade.

A deputada federal Margarida Salomão (PT-MG), coordenadora da Frente Parlamentar Mista pela Valorização das Universidades Federais, classificou a MP como grave ,“adotada deforma antidemocrática e sem nenhum debate com o setor”. Ela afirmou que irá pedir ao presidente do Congresso, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), para que a medida seja devolvida.

— Não há emergência, relevância nem qualquer outro requisito constitucional que justifique a intervenção desenhada pelo governo através de medida provisória — disse.

A nova MP estabelece ainda que “se não houver eleição, se a eleição for anulada ou se não conseguirem formar lista tríplice, será nomeado reitor pro tempore pelo ministro de Estado da Educação, ao mesmo tempo em que se realiza nova votação”.

O texto também determina que os cargos de vice-reitor e diretores de faculdades sejam escolhidos pelo reitor. Até agora, cabia a cada instituição definir a forma de seleção, a maioria por votações. O vice também concorria na mesma chapa do reitor, o que é eliminado pela medida provisória.

O mandato será de quatro anos para reitor, vice-reitor e diretores de faculdade, garantido em lei. Será permitida ainda uma recondução para o reitor e o vice-reitor. No entanto, o candidato à recondução terá de se afastar do cargo durante o período da eleição. O Ministério da Educação informou que não irá se manifestar.

“A falta de obrigatoriedade de eleições formais parece estar trazendo problemas, devido a realização de consultas informais que não seguem parâmetros claros” — Texto divulgado pela Presidência da República.

“Não há emergência, relevância nem qualquer outro requisito constitucional que justifique a intervenção” — Dep. Margarida Salomão (PT-MG) , da Frente Parlamentar Mista pela Valorização das Universidades Federais.

Para especialistas, MP fere autonomia universitária

Especialistas e integrantes da comunidade acadêmica criticaram a medida provisória editada anteontem por Bolsonaro por considerarem que ela fere a autonomia das instituições.

— A medida impõe um padrão quando há mais de uma forma de fazer a lista tríplice, e o importante é que a universidade tenha seu direito de escolher, respeitando sua autonomia — afirma o presidente da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), João Carlos Salles, reitor da UFBA, que conclui: — Vamos lutar para que a legislação favoreça a ideia que reitor eleito é reitor nomeado.

Presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Iago Montalvão defende a paridade do voto e critica interferência do governo.

— O estudante é o objetivo final da universidade. Essa medida atropela a autonomia universitária e reduz o espaço e participação estudantil. É uma coisa toda ideológica, sem nenhum respeito à democracia —afirma ele, acrescentando que a UNE vai questionar a medida no Supremo Tribunal Federal (STF).

Embora o físico Leandro Tessler, professor da Unicamp e especialista em ensino superior, discorde da UNE na questão da paridade, a medida provisória faz com que “universidades percebam isso como uma intervenção”.

— É demagogia achar que os estudantes e o pessoal não docente têm a mesma importância que os docentes. Mas essa iniciativa, como várias outras do governo, ainda que correta, está sendo feita sem o necessário período de discussão e sem convencer as pessoas de seus motivos —disse.

O educador e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro critica também a determinação de que diretores de faculdades e de institutos sejam indicados pelo reitor, diferentemente do que acontece hoje, quando eles são escolhidos por professores, estudantes e técnicos da própria instituição.

Ele também é contra o trecho da MP que define que institutos federais de ciência e tecnologia que, geralmente, escolhem seu reitor de forma direta, tenham que elaborar uma lista tríplice.

Os especialistas são unânimes em dizer que essas medidas deveriam ter sido debatidas com a comunidade acadêmica e não justificam uma medida provisória.

— O governo sabe que as universidades estão em recesso e espera que demorem a reagir. Nesse meio tempo, em alguns meses, as sucessões nas universidades serão regidas por essa medida provisória —diz Janine.

Ele ressalta, porém, que tanto o Congresso pode recusar a medida agora, quanto, após ação, o juiz de plantão do STF pode agir.

— Vejo as duas saídas para impedir (a MP). É uma lástima o governo ficar arrumando encrenca com a universidade pública numa hora em que há tanto a fazer pelo Brasil.