Correio Braziliense, n. 20635, 21/11/2019. Mundo, p. 14

Eleição sem data

Rodrigo Craveiro


Os corpos de alguns dos oito mortos na operação militar para a retomada da central de combustíveis de Senkata eram velados em uma capela de El Alto, quando a presidente interina, Jeanine Áñez, entregava ao Senado um projeto de lei para tentar pacificar o país. O texto prevê a realização de eleições gerais em 2020, ainda sem data; a anulação do pleito de 20 de outubro; e a recomposição do Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP) dentro de duas semanas. “Esse projeto pode ser perfeito, gostaríamos, como governo, que seja considerado como documento-base para um consenso nacional”, declarou Áñez, em entrevista coletiva. “Será a Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia que terá o trabalho de levar adiante a eleição dos juízes da OEP e, assim, agendar um calendário eleitoral”, acrescentou. Horas antes, a mandatária tinha anunciado que convocaria, ainda na manhã de ontem, eleições gerais — o que não ocorreu.

Também em declarações à imprensa, na Cidade do México, onde recebeu asilo, o ex-presidente Evo Morales classificou a repressão aos simpatizantes do Movimento ao Socialismo (MAS) de “genocídio”. Até o fechamento desta edição, 32 pessoas tinham morrido durante confrontos com as forças de segurança. “Na Bolívia, depois do golpe de Estado, temos cerca de 30 mortos. Esse massacre é parte de um genocídio que ocorre em nossa querida Bolívia”, afirmou o líder indígena. “Estão matando meus irmãos e irmãs”, completou. Ontem, o governo interino divulgou um suposto áudio em que Morales incitava seus eleitores a manterem o cerco a várias cidades.

Para Jorge Dulon, cientista político e professor radicado em La Paz, a convocação de eleições é uma saída muito adequada rumo à pacificação da Bolívia. “A outra opção, um decreto da presidente interina para chamar o pleito e escolher as novas autoridades do Tribunal Supremo Eleitoral, não seria conveniente por representar uma medida unilateral, por desprezar o consenso da população. A atual solução é muito mais democrática e enquadrada nos regulamentos vigentes: constituir a Assembleia Legislativa Plurinacional com simpatizantes do Morales e da oposição para desenvolver o processo. Primeiro, com a votação da lei”, disse ao Correio. “Por meio do parlamento, é muito provável que, pouco a pouco, haja a possibilidade de pacificar o país.”

O sociólogo e jornalista boliviano Adalid Contreras Baspineiro admite que o chamado a novas eleições se mostra urgente e contribuiria para baixar a tensão. “O mais recomendável é esgotar todos os esforços para obter um acordo no Parlamento, o qual deve convocar o processo eleitoral. A convocação direta, por parte de Áñez, não seria o mais recomendável”, explicou à reportagem. Segundo ele, o Senado e a Câmara de Deputados mantinham reuniões separadas, ontem. “No caso de terem chegado a um acordo, teriam de convocar a Assembleia, hoje, e trabalhar os textos da lei, a fim de anular as eleições de 20 de outubro, confirmar o novo órgão eleitoral e marcar um novo pleito.” A expectativa é de que todos os partidos, inclusive o MAS, participem hoje da sessão do Senado.

A decisão de Áñez ocorreu no mesmo dia em que a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou uma resolução para pedir à Bolívia a “urgente” convocação de eleições. Dos 35 países-membros, 26 votaram a favor do texto, quatro contra (México, Nicarágua, Granadinas e San Vicente), quatro abstenções e uma ausência. A resolução, apresentada por Brasil e Colômbia, exorta a Secretaria-Geral da OEA a conceder a La Paz “todo o apoio técnico para que se dê início imediato ao processo eleitoral, em conformidade com os princípios de transparência, independência, credibilidade e confiança”.

Matança

A Procuradoria Geral da Bolívia confirmou ontem que oito pessoas morreram na terça-feira, em uma operação policial-militar em uma central de combustíveis na cidade de El Alto, vizinha a La Paz. Um balanço inicial, divulgado anteontem, informava três mortos. O Instituto Médico Legal da Procuradoria Geral anunciou, por meio de comunicado, que “se evidencia objetivamente oito corpos”.

Pressão a partir do asilo

Enquanto simpatizantes de Evo Morales choravam os oito mortos (acima) na operação militar para retormar o controle da central de combustíveis de Senkata, em El Alto, o ministro da Presidência, Arturo Murillo, divulgou áudio no qual o ex-presidente asilado no México pede a um simpatizante que mantenha os bloqueios a várias cidades. “Irmão, que não entre comida nas cidades, vamos bloquear. Cerco de verdade. Quando me expulsaram do Congresso, em 2002, bloquearam. Agora, me expulsam da Bolívia e há bloqueio. Vamos ganhar”, diz Morales, no suposto telefonema para o dirigente campesino Faustino Yucra Yarmi. “A cada 24 horas vamos aguentar bloqueios. A partir de agora, será combate. Vivemos uma ditadura.”

Pontos de vista

Por Jorge Dulon

Tática de revolta

“As denúncias de que Evo Morales estaria dando indicações para impor um cerco às cidades de La Paz e de Cochabamba, além de instruções precisas sobre táticas para efetivar o bloqueio, representam consequências muito graves ante a comunidade internacional. Isso atenta contra os direitos humanos, não apenas contra a segurança e o bem-estar de todos os bolivianos e todas as bolivianas. Também coloca em evidência algo que não estava muito claro: o objetivo central do Movimento ao Socialismo (MAS) é causar mal-estar na população, fome geral e ira, a fim de que os bolivianos se enfrentem uns aos outros.”

Cientista político e professor radicado em La Paz

Por Adalid Contreras Baspinero

Medidas de pacificação

“Toda morte, seja do lado que for, é condenável. Uma condição para a pacificação é freiar a violência. Para isso, o governo tem de revogar o decreto que ampara as ações de força dos militares. E os bloqueadores também precisam levantar as medidas. Ambas as frentes devem tomar iniciativas, não apenas uma delas. O país pedindo, aos gritos, a pacificação.”

Sociólogo e jornalista boliviano