Correio Braziliense, n. 20661, 17/12/2019. Mundo, p. 12

O alvo é a pobreza
Rodrigo Craveiro



Impostos sobre transações com cartões de crédito no exterior, tributação de empresas que efetuarem saques em espécie, poderes extraordinários para o Executivo renegociar a dívida externa. O presidente da Argentina, Alberto Fernández, completa hoje uma semana de governo e acelera a conclusão de um pacote de emergência voltado a reativar a economia em uma nação cujos índices de pobreza e de desemprego atingem, respectivamente, 40% e 10,4%, dos 44,6 milhões de cidadãos. O Produto Interno Bruto (PIB) encerrará 2019 com uma queda de 3,1%, e a inflação estimada será de 55%. A expectativa de apresentação do pacote ao Congresso da Nação Argentina foi frustrada ontem, com o anúncio de que as medidas somente serão enviadas à Câmara dos Deputados hoje, para serem debatidas amanhã e votadas na quinta-feira.

Fernández colocou em marcha um plano contra a fome, definido em reunião entre o ministro do Desenvolvimento Social, Daniel Arroyo, e ministros de áreas sociais de todas as províncias. Na primeira etapa do programa, serão distribuídos 2 milhões de cartões para a compra de alimentos, nos valores de 4 mil pesos a 6 mil pesos (entre R$ 243 e R$ 365). A previsão é de que 4 milhões de argentinos sejam beneficiados.

Raúl Aragón, diretor do Programa de Estudos de Opinião Pública na Universidad Nacional de La Matanza (em San Justo, na Argentina), prevê que o impacto das medidas a serem apresentadas no Congresso será “muito alto”. “São três emergências simultâneas: econômica, sanitária e alimentar. Caso aprovadas, o presidente Alberto Fernández terá amplo manejo nos recursos do Estado. Ele declarou que pretende, basicamente, fomentar as pequenas e médias empresas, reativar a economia e atender às necessidades mais urgentes das classes baixas e dos aposentados”, explicou ao Correio.

Para Aragón, os contemplados pelo plano contra a fome poderão adquirir apenas alimentos e terão o cartão recarregado automaticamente uma vez por mês. “De alguma forma, vemos que Fernández começa a cumprir suas promessas de campanha”, comentou. Por sua  vez, Carlos Fara — especialista em opinião pública e comunicação de governo que participou de 140 campanhas eleitorais na Argentina e na América Latina — vê um ajuste impositivo do governo para equilibrar as contas, negociar a dívida externa e liberar fundos para movimentar a economia. “Fernández trata de evitar declarações de confronto. Em relação ao pacote, não há nenhuma grande surpresa de princípio”, disse à reportagem.

Segundo o jornal La Nación, a oposição no Parlamento, representada pela coligação Juntos por el Cambio (do ex-presidente Mauricio Macri), pediu à Casa Rosada mais tempo para avaliar e debater a lei de tripla emergência. Os pontos mais polêmicos da legislação são o aumento de impostos e a possível atribuição de faculdades especiais ao chefe de Estado. A aliança governista Frente de Todos conta com 121 dos 257 deputados e poderia depender de parte da oposição para aprovar os artigos mais polêmicos do texto.

O diário Clarín publicou que Fernández pretende decretar emergência no sistema de previdência, conceder forte incentivo às pequenas e médias empresas, e reordenar os gastos públicos (veja quadro). O presidente também deseja taxar em 30% as compras feitas por argentinos no exterior e em dólares por meios eletrônicos. “Tem uma lógica solidária e distributiva”, afirmou o chefe de gabinete da Presidência, Santiago Cafiero, à Rádio 10, ao explicar que o novo imposto “procura cuidar dos dólares que a economia argentina possui e reativar a indústria do turismo local”.

No domingo, Fernández fez um pedido especial aos pequenos e médios empresários, alicerces para a reativação da economia. “Peço que não demitam, nós lhes daremos vantagens para que cresçam. Isso significa também moratórias para as dívidas tributárias e previdenciárias que tenham. Daremos ajuda para que fiquem de pé”, comentou o mandatário, em entrevista à Rádio Mitre. “Na lei da reorganização econômica, as PMEs (pequenas e médias empresas) serão muito favorecidas, principalmente no tratamento tributário”, assegurou.

Metas e realidades do governo

Saiba quais são as medidas anunciadas e previstas pela Casa Rosada

Exportações agrárias

No último sábado, o presidente argentino, Alberto Fernández, publicou decreto que anula o esquema de retenção de quatro pesos por dólar exportado. O governo impôs uma porcentagem fixa de 9% para cada dólar exportado.

Imposto sobre compras em dólares

A Casa Rosada estuda um imposto de 30% sobre compras com cartão de crédito realizadas no exterior. O imposto recai sobre pacotes turísticos e contratações de diárias em hotéis. Além de proteger as reservas de dívidas, a medida busca fomentar o turismo interno.

Imposto sobre empresas

O governo também cobrará imposto especial sobre empresas que efetuarem saques de dinheiro em efetivo. Ao mesmo tempo, serão aplicadas deduções para melhorar a renda de seus funcionários.

Isenções fiscais

O pacote de leis prevê moratórias e isenções fiscais para pequenas e médias empresas. Os setores mais pobres também serão beneficiados com devoluções fiscais. Todas as dívidas dessas empresas entrarão em novo plano de pagamentos: seis meses para começar a pagar e 10 anos de prazo.

Demissões

Por meio de decreto, o chefe de Estado impôs um freio às demissões durante seis meses, estabelecendo a obrigação de pagar o dobro da indenização em caso de demissão sem justa causa.

Poderes extraordinários

Fernández solicitará ao Congresso a concessão de poderes especiais para renegociar a dívida de US$ 44 bilhões, contraída com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e com detentores privados de títulos em dólares e em pesos. O governo também deseja poderes extraordinários para “refazer a estrutura tarifária” e suavizar parcialmente aumentos de até 1.600% aprovados pela gestão anterior nas tarifas de água, eletricidade e transporte.

Emergência sanitária

O pacote de leis implementará um plano de emergência em saúde que incluirá a extensão dos planos de vacinação e maior cobertura de medicamentos, entre outros pontos. Também será aplicada a obrigatoriedade da imunização, principalmente contra o sarampo. Está prevista, ainda, a ampliação de um sistema de centros médicos cooperativos.

Aposentados

O projeto de lei pretende estabelecer emergência provisória ante a perda de poder aquisitivo dos aposentados com baixa renda. A ideia é construir novo índice, suspendendo o atual, e reforçar a aposentadoria mínima em um prazo de seis meses.

Redução de gastos públicos

O Executivo ficaria autorizado a unificar cargos e empresas públicas, para melhorar e diminuir “despesas supérfluas ou salários excessivos”.