Correio Braziliense, n. 20661, 17/12/2019. Saúde, p. 14

O duplo fardo da desnutrição


Cada vez mais países de baixa e média rendas enfrentam um dos maiores desafios nutricionais da atualidade. Ao mesmo tempo, têm uma parcela significativa da população que não consome o mínimo indispensável de calorias e um outro grupo de pessoas, também considerável, que segue uma dieta de baixa qualidade, diretamente ligada ao excesso de peso. Esse “duplo ônus da desnutrição” é enfrentado por mais de um terço desses países, 48 de 126, segundo relatório divulgado ontem na revista médica britânica The Lancet.

Autor principal do artigo, Francesco Branca, diretor do Departamento de Nutrição para Saúde e Desenvolvimento da Organização Mundial da Saúde (OMS), diz que o mundo está “diante de uma nova realidade nutricional”. “Não podemos mais caracterizar os países como de baixa renda e subnutridos, ou de alta renda e preocupados apenas com a obesidade. Todas as formas de desnutrição têm um denominador comum: sistemas alimentares que não fornecem a todas as pessoas saúde, segurança, preço e sustentabilidade”, resume.

Para a equipe responsável pelo relatório, essa mudança está ligada à rápida transição alimentar vivida nesses países. Entre os principais fatores está a combinação da redução da prática de atividades físicas com o acesso facilitado aos alimentos e bebidas processados, ricos em açúcares, gorduras e sal. “Essas mudanças incluem o desaparecimento dos mercados de alimentos frescos, o aumento de supermercados e o controle da cadeia alimentar por supermercados e empresas globais de alimentos e agricultura em muitos países”, completa Barry Popkin, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, e também autor do relatório.

A transição tem sido tão rápida que o mesmo indivíduo pode conhecer os dois problemas ao longo da vida. Dessa forma, a mesma criança pode ser obesa e ter um atraso no crescimento devido a uma dieta rica em calorias e pobre em nutrientes — por exemplo, os fast foods. A OMS estima que 2,3 bilhões de crianças e adultos no mundo estão com sobrepeso ou obesidade, e mais de 150 milhões de crianças sofrem atraso de crescimento devido à alimentação inadequada. Além disso, dietas ruins são responsáveis pela morte de 22% dos adultos no mundo, de acordo com o relatório.

Os autores usaram dados de pesquisas de países de baixa e média rendas nas décadas de 1990 e 2010 para estimar quais enfrentam a carga dupla de desnutrição. Na década de 1990, foram 45 países. Na atual, são 48. Ainda de acordo com o relatório, essa sobreposição de problemas nutricionais afeta cerca de 35% das famílias em alguns países, com níveis particularmente altos em Azerbaijão, Guatemala, Egito, Comores e São Tomé e Príncipe.

Infância

Barry Popkin chama atenção para o impacto desse problema nutricional em bebês e crianças. A exposição à desnutrição no início da vida, seguida de sobrepeso a partir da infância, aumenta o risco de uma série de doenças não transmissíveis. Dessa forma, o duplo fardo nutricional tem se transformado em significativo impulsionador das emergentes epidemias globais de diabetes tipo 2, pressão alta, derrame e doença cardiovascular.

“Os problemas emergentes da desnutrição são um forte indicador de que  pessoas não estão protegidas dos fatores que levam à má alimentação. Os países mais pobres, de baixa e média rendas, estão passando por uma rápida transformação na maneira como as pessoas comem, bebem e se deslocam para o trabalho, para casa, como usam o transporte e se divertem”, completa Barry Popkin.

Para reverter essa tendência, são necessárias “grandes mudanças sociais”, aponta o relatório, que defende “novas políticas alimentares, cujo principal objetivo é a alimentação saudável”. Os autores exortam os governos, as Nações Unidas, a sociedade civil, os acadêmicos, a mídia, o setor privado e as plataformas econômicas, entre outras instituições, para lidar com o problema.

“Dada a economia política dos alimentos, a mercantilização dos sistemas alimentares e os crescentes padrões de desigualdade em todo o mundo, a nova realidade nutricional exige uma comunidade ampliada de atores que trabalhem de maneiras mutuamente reforçadas e interconectadas em escala global”, justifica Francesco Branca. “Sem uma profunda transformação do sistema alimentar, os custos econômicos, sociais e ambientais da inação impedirão o crescimento e o desenvolvimento de indivíduos e sociedades nas próximas décadas”, alerta.

Palavra de especialista

Combate em várias frentes

“A publicação da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o duplo ônus da desnutrição ocorre após 12 meses de artigos da Lancet que exploram a nutrição em todas as suas formas. Com esses e outros artigos em todos os periódicos da Lancet ao longo de 2019, fica claro que a nutrição e a desnutrição precisam ser abordadas de várias perspectivas e, embora algumas vezes os resultados tenham convergido, ainda há trabalho a ser feito para entender as múltiplas manifestações da desnutrição. Com seis anos restantes na Década de Ação das Nações Unidas sobre Nutrição, essa série e comentário definem a direção futura necessária para alcançar a meta global de erradicar a fome e prevenir a desnutrição em todas as suas formas.”

Richard Horton, editor-chefe da revista The Lancet

22%

das mortes de adultos no mundo estão ligadas à ingestão de dietas ruins, segundo a OMS

Frase

"Sem uma profunda transformação do sistema alimentar, os custos econômicos, sociais e ambientais da inação impedirão o crescimento e o desenvolvimento de indivíduos e sociedades nas próximas décadas”

Francesco Branca, diretor do Departamento de Nutrição para Saúde e Desenvolvimento da Organização Mundial da Saúde