Correio Braziliense, n. 20634, 20/11/2019. Política, p. 2

Em jogo, o combate a corrupção

Renato Souza


O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) se reúne, hoje, para votar se órgãos fiscalizadores, como a Receita Federal e o Banco Central, precisam de autorização judicial para compartilhar dados detalhados de contribuintes com entidades de investigação, como o Ministério Público e a Polícia Federal. O julgamento causa apreensão em autoridades de diversos segmentos. Desde julho, uma decisão liminar do ministro Dias Toffoli, presidente da Corte, paralisou investigações em todo o país que usavam dados dos órgãos sem autorização da Justiça. Entre os casos afetados está o do assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, e diligências relacionadas à Operação Lava-Jato.

Um levantamento do Ministério Público aponta que 935 investigações com participação do órgão aguardam a posição do STF. Para que uma decisão seja tomada, é necessário que pelo menos seis dos 11 ministros do Supremo votem no mesmo sentido. A sessão que trata do caso estava agendada, inicialmente, para amanhã, mas foi adiantada para hoje por determinação de Toffoli, a quem cabe definir a agenda do plenário. Ele é o relator da proposta e deve ser o primeiro a votar, após as sustentações orais, em que se manifestam advogados, entidades admitidas para falar no processo e o procurador-geral da República, Augusto Aras.

Nos últimos dias, o caso deixou o Supremo e o MPF em lados opostos. Aras defendeu, em documento enviado à Corte, que a Unidade de Inteligência Financeira (UIF), antigo Coaf, e a Receita Federal possam compartilhar informações financeiras de pessoas físicas e jurídicas sem a necessidade de aval do Poder Judiciário. De acordo com o procurador, a medida é necessária para garantir o combate à corrupção no país. Parte das investigações sobre a morte da vereadora Marielle Franco e do motorista dela, Anderson Gomes, está parada por utilizar dados detalhados dos suspeitos. O mesmo ocorre em casos da Lava-Jato e de milhares de outras diligências sobre crimes comuns.

Para determinar o congelamento das investigações que utilizam dados financeiros sem autorização da Justiça, Toffoli atendeu a um pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). O parlamentar é alvo de uma investigação no Rio de Janeiro pela suposta prática de “rachadinha”, em que ele teria recebido parte do salário de assessores quando era deputado estadual. A defesa alega que o parlamentar teve o sigilo fiscal quebrado indevidamente pelo MP. O recurso dos advogados de Flávio foi apresentado no processo que trata da acusação de sonegação de impostos contra dois donos de um posto de combustíveis. O crime teria ocorrido em 2003, no interior de São Paulo.

Para Aras, proibir o intercâmbio de informações que não tenham autorização prévia gera “enfraquecimento do microssistema brasileiro de combate ao crime de lavagem de ativos, impactos à imagem do país junto a organismos internacionais, como o Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) e o Banco Mundial, além da possibilidade de que sejam instauradas apurações contra pessoas sobre as quais não recai qualquer suspeita”. A manifestação dele será avaliada pelos ministros do Supremo no julgamento.

Impacto

A determinação de Toffoli, em relação ao caso, gerou forte impacto na produção de Relatórios de Inteligência Financeira (Rifs). Dados do Ministério da Economia revelam uma queda de 84,4% na produção dos relatórios entre junho e agosto. Um mês antes da decisão do ministro, foram produzidos 876 Rifs. Em julho, já sob efeito do ato do ministro, o número final é menor, com 533 levantamentos concretizados. No mês seguinte, é possível notar, de acordo com os dados, uma queda acentuada, com a realização de apenas 137 análises.

Os levantamentos, sob responsabilidade da UIF, são utilizados para embasar investigações em curso (veja arte). Por meio do monitoramento de dados sobre movimentações suspeitas, a unidade repassa para órgãos, como Polícia Federal e Ministério Público Federal e dos estados, informações importantes de transações que podem estar relacionadas a crimes como tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, tráfico de pessoas e até a organizações terroristas. A Polícia Civil foi o destino de 1.026 relatórios neste ano, até outubro. A corporação foi seguida pela PF, a segunda maior destinatária, que recebeu 924 análises.

Série de danos

Aras afirmou também que impor limite à troca de informações entre órgãos pode comprometer não só a reputação internacional do Brasil quanto sua atuação nos principais mercados financeiros globais. Entre as consequências mais concretas — elencou ele — estão a dificuldade de acesso a créditos internacionais para projetos de desenvolvimento, a redução do rating de investimento do país por agências internacionais de classificação de risco e a dificuldade de pagamentos a exportadores brasileiros em transações comerciais internacionais, “além de danos político-diplomáticos”.