O Globo, n. 31551, 25/12/2019. País, p. 11

Indulto é “ornitorrinco jurídico”, diz subprocurador
Vinícius Sassine



O decreto do presidente Jair Bolsonaro que perdoa a pena aplicada a policiais e a outros agentes de segurança pública condenados por crimes culposos — quando não há a intenção de ser praticado — é um “ornitorrinco jurídico”, um “excesso de poder” por parte do presidente e, numa análise inicial, uma violação à Constituição Federal. É o que afirma ao GLOBO o subprocurador-geral da República Domingos Sávio da Silveira, coordenador da Câmara de Controle Externo da Atividade Policial da Procuradoria-Geral da República (PGR).

A subprocuradora-geral Luiza Frischeisen, coordenadora da Câmara Criminal, um segundo colegiado da PGR responsável por assuntos relacionados a crimes cometidos por militares, também questiona o decreto de indulto assinado na segundafeira por Bolsonaro e publicado ontem no Diário Oficial da União. Para ela, o mais preocupante do decreto é a extensão do perdão a agentes de segurança que tenham sido condenados por ato cometido “mesmo que fora de serviço”, como consta do texto assinado pelo presidente.

Os integrantes das duas câmaras vão analisar os detalhes do decreto e podem provocar o procurador-geral da República, Augusto Aras, para que conteste o decreto no Supremo Tribunal Federal (STF). Integrantes da cúpula da PGR lembram que esse tipo de contestação já ocorreu por parte de um procurador-geral. Em dezembro de 2017, Raquel

Dodge ingressou no STF com uma ação direta de inconstitucionalidade contra decreto de indulto do presidente Michel Temer, que estendia o perdão para condenação por corrupção.

— É a primeira vez que vejo num decreto de indulto a vinculação da profissão de quem praticou o ato com a prática do crime. O presidente confunde a ideia de clemência com o indulto individual, que é o instrumento da graça. Ele criou um ornitorrinco jurídico ao confundir o indulto, que é genérico, com a graça. Ele criou um monstrengo —diz Domingos.

Segundo o subprocurador-geral, o decreto é “absolutamente inusitado” e “excede o poder” presidencial. Um outro fator de inconstitucionalidade, segundo ele, é o atropelo do Congresso Nacional, que já havia rejeitado a proposta de excludente de ilicitude a agentes de segurança prevista no pacote anticrime formulado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro.

Segundo a subprocuradora-geral Luiza Frischeisen, não são comuns condenações por crimes culposos. A coordenadora da Câmara Criminal diz que nem prisões preventivas são decretadas em casos culposos. Para ela, o benefício do indulto não pode ser concedido a uma categoria específica de profissionais.

— O que me preocupa é a extensão do perdão para pessoas fora do exercício da função — afirma Luiza.

Moro defende

No Twitter, Moro disse ontem que o indulto assinado por Bolsonaro substitui benefícios “salva-ladrões ou salva-corruptos” de governos anteriores. “Em substituição aos generosos indultos salva-ladrões ou salva corruptos dos anos anteriores, o governo do PR (presidente da República) Jair Bolsonaro concedeu indulto humanitário a presos com doenças terminais e indulto específico a policiais condenados por crimes não intencionais”, afirmou.

O decreto de Bolsonaro perdoa agentes de segurança pública que tenham sido condenados por “excesso culposo” ou outros crimes culposos, desde que tenham cumprido um sexto da pena. A regra vale para quem cometeu o crime “no exercício da função ou em decorrência dela”. O texto também cria a hipótese de conceder o perdão da pena para policiais de folga, desde que tenham atuado para eliminar o risco contra si ou outra pessoa. O decreto também vai beneficiar militares das Forças Armadas empregados em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

O indulto para agentes de segurança pública não poderá ser concedido para quem tiver cometido 38 tipos de delitos, entre eles crimes hediondos, estupro e tortura.

“Ele (presidente) criou um ornitorrinco jurídico ao confundir o indulto, que é genérico, com a graça. Ele criou um monstrengo” — Domingos Sávio da Silveira, coordenador da Câmara de Controle da Atividade Policial.